terça-feira, maio 24, 2016

mais uma história de não-amor em São Paulo

Eu não me lembro como nem porquê puxei conversa com um senhor que catava latinhas. Era cinco da manhã, o primeiro ônibus do dia pra minha casa estava para passar e eu deveria manter a atenção.
Mas não resisti, achei que aquele senhor poderia ter um bom papo, talvez pelo bom gosto de se vestir usando All Star vermelho cano alto mesmo sendo simples e aparentemente, um morador de rua.
Disse que o All Star estava com ele há muitos anos, desde a época do divórcio.
Fiz a besteira (ou não) de perguntar “Que divórcio?”
E eis que o senhor começou a me contar uma história, talvez a sua, talvez ficção. E eu lhe dei atenção, talvez por estar bêbado demais para me negar a isso.
Ele me disse que a tinha conhecido na faculdade. Ele cursava Matemática e ela Letras “com ênfase em Sueco”, como fez questão de me lembrar.
“Se chamava Sandra, tinha um ar hippie. Sorriso bonito, delicada mas pragmática. Prática.”
“Então o senhor tem ensino superior?” o velhote fez um “o” completo com a boca, surpreso. “Mas claro que tenho meu filho, eu tenho mestrado na Bélgica, inclusive”.
Percebi logo que poderia ser verdade, uma vez que notei que o senhor não falava com muitos erros e tinha um porte diferente dos demais moradores de rua.
Continuou me contando que começara a namorar Sandra durante uma greve dos professores de sua faculdade. Ela era do movimento estudantil, naquela época, anos 70, ser do movimento estudantil geralmente era o mesmo que se dizer de esquerda. Ou seja, para a época: comunista.
Acendi um cigarro, ofereci, negou.
Se apaixonaram automaticamente, começaram a namorar ao mesmo tempo que cursavam o último semestre de seus cursos.

Após a formatura, começaram a se afastar gradativamente da política. Queriam executar seus planos, queriam constituir família. Mas ele tinha medo, Sandra é que pressionava. Eram de famílias digamos menos pobre que o resto do Brasil. Afinal, nem ele nem Sandra nunca haviam pago a faculdade com dinheiro de seus trabalhos, mas sim dos seus pais.
Ele arranjou emprego numa grande multinacional, fruto do contato de seu pai com diversos executivos e o próprio CEO da tal empresa de origem francesa. Em três anos nessa empresa, teve que se mudar para França, e aí não havia mais como adiar o casamento que Sandra tanto queria.
Casaram-se ainda no Brasil, tradicionalmente como gostava as famílias de ambos classe média.
Foram para França em 83, e não queriam saber mais de nada.
Sandra não trabalhava, mas também não precisava, ele provia todas as despesas da casa tranquilamente com o salário deste emprego.
Aprenderam francês juntos, aprenderam a viver confortavelmente em For Sur Mer, fizeram amigos, e Sandra engravidou em 1986, depois desses três anos muito confortáveis. Ele até queria voltar para o Brasil mas agora com essa gravidez, o melhor era continuar vivendo ali até que o bebê tivesse uma idade razoável.
A criança, menino, cresceu com nome de Edgard, sendo educado numa escola franco-brasileira que lhe permitia desenvolver tanto o português como o francês. Aprendeu tudo o que podia sobre as artes e era um exímio artista.
Neste momento meu ônibus passou, mas fingi que não vi e continuei a ouvir a história. Era mesmo improvável que o homem bem sucedido dessa história hoje tivesse catando latinha na Rua da Consolação. Então eu queria saber até onde ia.
O menino ainda mora na França, em Pertuis, próximo de onde cresceu com ele e Sandra. É artista plástico.
Pensei, e como pode deixar o pai neste estado, com idade tão avançada?
Continuou me contando a história, mesmo tendo percebido que algo me passava pela cabeça. Esse velho é bom, pensei.
Cinco anos depois do nascimento de Edgard, era hora de planejar a volta para o Brasil. A empresa pedia, a família concordava, então que voltasse.
Disse que veio no início de 1991 aqui em São Paulo para acertar detalhes de moradia. Trouxe Sandra e o menino. O casamento ainda ia bem.
Voltaram para a França depois entusiasmados com a mudança, a volta pra casa. E então Sandra descobriu que estava grávida de novo.
Adiaram longos e frios 6 anos de volta ao Brasil. A criança, menina desta vez, nasceu saudável, alegre e linda. Era o centro das atenções da família. Isadora, loura de cabelos finos e delicados, ficou com toda a beleza da família nos genes.
Eu vi nessa hora um lampejo louro nos cabelos sebosos do senhor, talvez ele tivesse sido apresentável um dia. Sem cheiro de sujeira, sem buracos remendados em sua blusa de lã.
O dia estava nascendo, era um domingo de manhã e ainda tinha gente estranha bêbada voltando das baladas.
Mas eu quis ouvir o resto da história, e o convidei para ir tomar um café numa padaria perto da República.
Uma vez na padaria, pingado e pão na chapa, me contou que nesses seis anos finais em For Sur Mer, resolveu estudar. Se sentia sufocado “aquela coisa que dá depois de 10 anos casados”. Então fez mestrado em Ciencias Econômicas e alguns MBA, em várias universidades pela Europa. Chegou a ficar 3 ou 4 anos fora, apenas estudando. Voltava para casa aos feriados e férias, ficava um pouco com a família, mas não sentia saudade. “Eu era frio, meu filho. Eu não ligava para eles, achava que meu dinheiro sustentando-os era suficiente”.

Quando parou de estudar, notou que havia perdido boa parte da criação de sua menina, uma parte importante do crescimento de seu menino e o pior de tudo, o amor de sua Sandra.
No início dos anos 2000, já de volta ao Brasil há 2 anos, morando confortavelmente em bairro nobre de São Paulo, ficou mais 7 anos forçando um casamento que não queria mais.
Trabalhava muito, viajava muito a trabalho, e perdia de propósito os momentos importantes com a família.
“De propósito”
“Porque de propósito?”
E me explicou que havia se enganado sobre Sandra. Que ela já não era mais a menina hippie de sorriso encantador. Ela era uma quarentona chata, com a bunda caída e que não saia de casa, não se vestia direito nem para si nem para ele, engordou, “enfeiou”, como fez questão de dizer.
Que babaca, logo pensei.
Em 2007, numa viagem a trabalho em Nova Iorque, conheceu uma arrumadeira num hotel que estava hospedado. Brasileira, imigrante ilegal.
Começaram a sair, ela era 15 anos mais nova que ele e isso parecia o máximo para ele.
Não sabe dizer se era apaixonado por essa. Mas se divorciou de Sandra, deixando-a com Isadora.
Essa moça, 15 anos mais nova, era simples, do sul, não era um poço de beleza e nem era culta como Sandra. Mas era o suficiente, cuidava dele e o fez sentir-se rejuvenescido. Mesmo que sua menina não gostasse dela. E nem ela de sua menina.
Um dia brigaram feio, a filha e a moça. Então depois disso perdeu contato com todos, só falava de vez em quando com Edgard que continuava na França.
E então, me disse que um dia a moça lhe pôs pra dormir e levou tudo o que tinha. Dinheiro, documentos, relógios, joias, absolutamente tudo. Passou bens para seu nome, tinha procurações falsas. Fez um esquema tão bem preparado, planejado há anos quem nem a aposentadoria ele conseguia provar ser sua.
Sem conseguir provar nada a respeito de sua verdadeira identidade, foi morar na rua.
Contou que o arrependimento por ter deixado Sandra recaiu sobre seus ombros de uma forma tão cruel, que ficou dois anos sem pronunciar nenhuma palavra. Achavam que ele era mudo. Mendigo e mudo.
“E como se recuperou?”
“Eu vi Isadora e Sandra saindo do hospital, ano passado. Isadora a levou. Meu peito quase explodiu!”
Disse que passou a acompanhar todas as idas das duas no hospital. “Ali no Albert Einstein sabe? Eu fico por ali agora.”
Perguntei se teria coragem de abordá-las. Ele disse que sim, e que estava catando latinha para conseguir algum dinheiro para ficar decente e falar com elas. Não queria que elas o vissem como um mendigo. Mas disse que havia 2 meses que não via as duas indo ao hospital e que tinha medo de que algo tivesse acontecido. “Sandra deve ter uns 70 anos agora. Estava bem velha quando a vi”
Percebi que seus olhos estavam marejados. Não quis imaginar o que haveria de acontecer a este senhor se Sandra tivesse morrido. Tirei uma nota de 20 do bolso e lhe entreguei. Dei dois tapas amigáveis em seus ombros e me despedi.
Lá fora, o céu azul bem claro, a poluição, as buzinas, dava o tom de normalidade paulistana. Eu não tinha uma boa sensação, mas não havia porque se preocupar, eu não era casado, eu não tinha Sandra. Meu ônibus passou, entrei.
Eu nunca mais saberia se Sandra estava viva, o amor da vida de um homem que eu nem sabia o nome, mas torcia pela história. E que história.