sexta-feira, outubro 31, 2014

Camundongos de estimação

Hiago tem camundongos de estimação. Ele não sabe mensurar quantos são e nem onde eles ficam, mas eles estão por aí. Hiago os vê e alimenta-os na estação Barra Funda. Enquanto aguarda o trem, seus camundongos preferidos, o Paulinho e o Arnaldo, aparecem entre as ferragens e Hiago os admira. A pelagem acinzentada como se tivessem cobertos de fuligem, ou como se tivessem escapado rapidamente pelo carburador de um carro velho.

Paulinho e Arnaldo são os mais velhos de uma ninhada inteira que Hiago conhecia desde sempre. Na verdade não havia como determinar quais eram Paulinho e Arnaldo ou quais eram de outra ninhada, mas para Hiago, todos eram da ninhada de Paulinho e Arnaldo.
Hiago sempre mantinha em sua mochila um pacote de amendoins para seus camundongos. Ao descer a escada rolante, Hiago já se posicionava na beira da plataforma, para além da linha amarela de segurança e observava atentamente linha de ferro do trem. Qualquer movimento, o mínimo chacoalhar do mais imundo papel entre a malha de ferro, Hiago sabia que era Paulinho ou Arnaldo. Despejava o amendoim na linha e os via roer e arrastar os grãos até um buraco qualquer na parte abaixo da plataforma. 

Eram tão pequeninos, era incompreensível para Hiago os olhares das outras pessoas na plataforma, com nojo ou achando que Hiago era louco. Eles não podiam fazer mal algum a ninguém. 

Certo dia Hiago sonhou um sonho louco. Sonhou que Paulinho e Arnaldo lhe agradeciam. Empinavam o focinho minúsculo para cima e entre seus dentes tão grandes, saía um ruído que lhe parecia um "muito obrigado Hiago". 

Então toda vez que Hiago os alimentava, ficava olhando para Paulinho e Arnaldo, quando eles cheiravam o alimento, esperando que o sonho fosse verdade.



*este conto faz parte da série infanto-juvenil "Quem conta um conto, ganha um ponto", postado originalmente em 28/08/13

domingo, outubro 26, 2014

Os Novos Politizados

Até onde o extremismo político é saudável?

Visto que atualmente o Brasil passa por um momento extremamente polarizado onde basicamente é a direita contra a esquerda política, o sul/sudeste contra norte/nordeste, e o ódio sendo destilado e fumegando em várias rodas de conversas que sem muito esforço viram discussões passíveis de serem levadas para o lado pessoal, até onde a postura radical e o ponto de vista sem brechas ou flexibilização pode ser saudável para uma população, principalmente uma assim, misturada como a brasileira?

Segundo a psicologia, quando algo se manifesta em um ato de raiva ou violência, pode ser a consequência de uma frustração ou decepção. Há alguns anos acompanhamos noticiários cada vez mais mordazes atacando nossa política e denunciando casos de corrupção cada um mais escandaloso que o outro. Isso, visto pelo cidadão que recentemente subiu de classe e conquistou cada bem adquirido com trabalho e incentivos do governo, soa como uma traição, uma vez que alguns personagens desses casos de corrupção são massacrados pela mídia e reverberam no falatório popular.

Com o aumento dos preços por uma instabilidade inflacionária da economia brasileira em 2014/2015, os pertencentes dessa classe média emergente viu tudo o que foi conquistado no governo Lula e isso o fez entrar em alerta. Sempre sendo manipulado por uma mídia golpista que admite ter apoiado o que foi o maior retrocesso da sociedade brasileira, a Ditadura Militar, esse cidadão explode e se deixa levar por motivos que talvez não sejam seus, mas que o indignam nem se sabe porquê.

Se indigna porque, afinal? Se nos últimos anos ele conseguiu fazer faculdade, celular, carro, internet, computador, eletrodomésticos de alta tecnologia e até casa? E se se indigna, então que seja coerente, já que muitos desses cidadãos indignados só se manifestam por uma parte dos supostos problemas, e uma outra parte, mais regional, nem se quer se incomoda do fato de não ter água ou bom salário aos professores.

Talvez falte um reconhecimento de classe. Talvez o cidadão emergente esteja com uma mentalidade de uma classe a qual não pertence, mas que quem faz parte quer que pense que são todos da mesma classe porque quanto mais gente, mais força. Mas não são, afinal o cidadão que conseguiu comprar um apartamento pelo Minha Casa Minha Vida não está no mesmo núcleo de quem compra uma BMW por ano. E é sempre assim, desde que estejam protestando por uma causa que não diz respeito a classe emergente mas sim a elite, a elite recebe a classe emergente de braços abertos. Mas não tente  frequentar o colégio particular dos seus filhos ou invadir a primeira classe na sua viagem para Miami.

Mas, como todas as farsas, esta também há de cair. Porque não há elite que deseje igualdade, e é só uma questão de tempo para os novos politizados revoltados on-line notarem que não fazem parte desta classe e jamais farão.




sábado, outubro 25, 2014

eu li em um muro 'falta de coragem não é covardia', mas já era tarde demais


Existem coisas que nós precisamos saber por nós mesmos. Eu estou descobrindo algumas dessas coisas.

As vezes você vai conhecer alguém, mas ela não vai te conhecer. Você vai se ver nessa pessoa, e vai ser feliz por ela, pelo fato dela ter a coragem de se dar bem fazendo uma coisa que você não teve coragem. Como ser cantora, como se dedicar a música ou a arte, que no fundo, é a única coisa que vale a pena.

Aí você vai colocar a música dessa pessoa pra tocar na janela do seu quarto, pensando "e se eu tivesse tentado?", você vai acompanhar ela na música, vai imaginar onde ela está neste momento. Vai se imaginar em palcos, vai pensar na vida pacata que você leva e nos vários obstáculos que teria que enfrentar para ter se tornado cantora. Vai pensar "é impossível", e vai seguir, com o desejo perturbador de fazer as pessoas conhecerem o que você sabe fazer de melhor.

Vai ficar pensando nisso por vários dias, isso vai te perturbar de verdade, ao ponto de você querer dormir só pra não ter que pensar na possibilidade de ter vivido do prazer. Você poderia ter vivido da sua música, exatamente agora, aos vinte anos, estaria no auge do começo. O mundo precisa da sua voz, as pessoas precisam de ter você presente nos dias dela, no rádio do carro durante o transito, em seus ipods durante o trajeto para a faculdade, num festival, com todo seu talento exalando no ar e impregnando as pessoas. Uma alma é algo grande demais para ficar preso apenas em um escritório ou um apartamento.

Você precisa disso, e o mundo precisa de você. Mas você preferiu se esconder, e deixar as coisas serem normais da forma como foram com seus pais. Uma série de pensamentos escrotos vão permear a sua cabeça, mas no fundo você vai saber que eles são invenção do ócio.

Aí você vai envelhecer ouvindo suas cantoras favoritas que tiveram coragem de tentar e deram certo, diferente de você que nem se deu ao trabalho de tentar.

originalmente postado em 30/1/14

quarta-feira, outubro 22, 2014

O Teatro Mágico

Era uma vez uma garota meio complicada que um dia, descobriu no seu computador algumas músicas diferentes do rock n roll que estava habituada a ouvir. Eram músicas em português, de cunho crítico social, ou românticas, ou folclóricas, ou eletrônicas mas todas carregadas de algo que não existia na música brasileira há muito tempo: poesia. Aquelas músicas começaram a tomar um espaço cada vez mais amplo na rotina daquela menina, e a playlist onde se encontravam tais canções no iPod foi ficando gorda.
Era possível ouvir aquelas canções em qualquer ocasião do dia, pois elas falavam sobre todas as coisas. Se estivesse dentro do trem, havia a que falasse de um certo monstro que engolia o bem estar das pessoas. Se estivesse em casa, sozinho, havia aquela que falava sobre uma forma curiosa de comparar a sua fé ao seu café. E se estivesse no mar, tinha aquela que contava a linda estória de uma garota cujo o mar se apaixonou.
Havia ainda muitas outras, cada qual numa leva sempre de 19 canções por álbum, de um grupo de muitas pessoas que se entitulavam "trupe", e a garota gostou daquilo. Não era uma banda, não era um mero grupo, não eram só artistas, eram uma trupe. Eram originais, diferentes, únicos. Suas canções eram um marco tanto para a garota complicada que relacionava sempre a trupe a belas manhãs ensolaradas com gente feliz descendo do ônibus rumo ao trabalho, quanto para a própria música brasileira que não tinha nada assim tão cativante a pelo menos 20 anos.
Então, os anos dourados, a melhor fase da vida daquela garota foi marcada pela música cativante da trupe de rosto pintado que viera da sua cidade vizinha.
O tempo passou, como é o normal de ser. A garota cresceu, virou então uma mulher ainda mais complicada e nem mesmo a música era capaz de ajudá-la novamente. Mas mesmo que fosse capaz, a tal trupe que fazia parte da sua história, já não era a mesma. Não se parecia mais com uma trupe. Embora o número de fãs tenha aumentado mais do que ela mesma esperava (e desejasse pois tinha até ciúmes da trupe), a trupe agora era apenas uma banda. Suas canções não tinham estórias. Suas perfomances de palco não tinham mais brilho. Suas vozes eram por demais ensaiadas. Suas letras pareciam compradas em qualquer folhetim. Era o fim de uma trupe e o início de (mais) uma banda.
Era a invalidação de todo um período da vida daquela garota. Era a anulação de um estado de bem, como se tudo tivesse sido uma farsa.
Via filas de fãs para o show da trupe-banda, mas sabia que nenhum deles ali sentia em seu estômago o queimar adocicado da ansiedade por algo que amava.
É, talvez a garota amasse a trupe. Mas agora já não mais. Em seu peito havia a marca de uma chama que queimava "só enquanto eu respirar" ela repetia com os olhos carregados de lagrimas. Em sua mente, nas suas memórias, havia um epitáfio curto e sombrio escrito "aqui jaz O Teatro Mágico, uma trupe que já foi".

segunda-feira, outubro 20, 2014

VIDA NÃO É JUSTA

Você nasce. Aí começa a crescer.

Percebe que sua mãe é a melhor pessoa do mundo e seu pai é seu super herói.
Você não tem motivo nenhum pra sentir ódio ou raiva. Musica te faz bem. Seus brinquedos e seus irmãos são seus maiores companheiros. Brincar é tudo o que há de melhor no mundo. Toddynho combina perfeitamente com Castelo Rá Tim Bum, Goku é tão foda quanto deus, Dragonball e Pokémon viram religião, filosofia de vida.
Aí vem os esportes. O futebol na rua com a molecada, as risadas, os dedos esfolados, as traves de chinelo.
As lutas, as corridas, os mergulhos, as pipas, os doces.
Tudo se resume a meia dúzia de balas e bolinhas de gude, não existe preocupação.
Só que um dia você se dá conta de que as coisas já não tem tanta graça.
Sua aparência te preocupa, passa a ser mais importante que o carro do churros. Você se sente estranho quase sempre. Deslocado, no lugar errado e na hora errada do mundo inteiro.
Começa a ter desejos que te deixam envergonhado, começa a considerar a ideia de pecado. Só que a pressão dentro de você é tanta, que passa então a se rebelar contra si mesmo em busca de preencher um vazio.

Um vazio que é maior que um buraco negro no espaço e que vai te torturar sem pena.

Vem as alternativas. Amigos, que preenchem parte do espaço do buraco negro como um aerosol que se dissipa no ar com o passar do tempo.
Bebidas, drogas, que te tiram de perto do vazio e te levam pra um lugar estranho dentro da sua própria cabeça.
Sexo, que faz você achar que o buraco negro dentro de você era mentira, por um curto momento.
Então cansado de lutar contra si mesmo, você encara o vazio enorme dentro de si, e tenta aprender com ele. Passa anos levando-o consigo ao trabalho todos os dias, porque você tem que trabalhar agora.

Então um dia, o buraco negro e vazio que te ocupa, começa a lhe sorrir, e você, ao sorrir de volta, vê alguém através dele. E então, percebe que não é o único estranho no mundo a ter um vazio amargurado como bicho de estimação. E isso acaba te aproximando de um semelhante. Até que, sem perceber, você se dá conta de que seu vazio negro amargurado se uniu ao buraco negro angustiante do semelhante, levando os dois a um abismo negro de instabilidade e incertezas que as vezes, as pessoas chamam de amor.

É tarde demais pra retornar, e mesmo se conseguir, quando retornar a superfície da realidade, seu vazio será dez vezes maior, levando junto pra escuridão as poucas coisas que o aliviava. A vida não é justa, não é mesmo? Mas ainda é possível confiar uns nos outros pra nos puxar do abismo que existe dentro de todos nós.

*originalmente postado em 25/06/14