quarta-feira, abril 24, 2019

Onde você estava?


Ontem quando ela caminhava no centro, teve uma crise de choro pensando em todas as coisas que vem dando errado. Dinheiro que não dá conta do tanto de coisas para pagar, se vestir bem e ainda ser feliz.
Onde você estava?
Ela engordou 17 kg nos últimos 4 anos, porque se não dá pra ficar alegre naturalmente, se não tem alguém para conversar, se não há jeito de se sentir satisfeita, ela come.
Onde você estava?
Segunda feira o chefe passou a mão em sua bunda, e quando ela olhou exasperada pelo que havia acontecido, ele deu risada e mandou-a embora. Foi no banheiro e chorou, voltou com o rosto inchado, sentou em sua mesa e qualquer outra coisa parecia mais interessante do que o trabalho. No fim do dia recebeu uma advertência por telefone direto do departamento pessoal. Foi embora se arrastando.
Onde você estava?
O namorado anda destratando ultimamente, chegou a dar-lhe um soco. Ontem mesmo, ela estava bem triste e o chamou para um encontro através de mensagens instantâneas mas ele ainda nem visualizou.
Onde você estava?
O pai, entre dezenas de xingamentos, reclamou porque a roupa não estava lavada, sem deixar que ela respondesse, voltou a xingá-la. Chorando muito, ela lembrou de você por um minuto e depois logo fez questão de esquecer.
Onde você estava?
Havia gastado dinheiro com restaurantes no fim de semana e durante a semana sua primeira refeição havia sido na quarta feira. Uma banana, e porque estava prestes a desmaiar de fome. Mas, pensava ela, talvez isso a fizesse emagrecer e você voltasse a gostar dela.
Onde você estava?
Cinco anos atrás depois de beber demais em um carnaval, um homem a empurrou para dentro de seu carro, e ela sem saber se queria ou não, completamente embriagada, acabou aceitando que aquele homem transasse com ela. Depois o mesmo a jogou no meio fio e arrancou com o carro. Ela nunca mais se recuperou disso e passou a se odiar desde então.
Onde você estava?
Seu tio brincou de colocá-la estrategicamente inclinada sobre um sofá, na casa de sua avó, e depois disso a penetrou, segurando pelo cabelo, empurrando e segurando o rosto que gritava no meio de almofadas. Seu tio terminou e saiu, nunca mais se falaram direito, ela ficou muito machucada mas não queria que sua avó descobrisse, tinha medo de apanhar. Ela tinha 9 anos.
Onde você estava?


Edgar Degas: Interior (A Violação) – 1870



*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência*

sexta-feira, novembro 09, 2018

Patético romance

Ele tinha um jeito de me fazer sentir a pessoa mais interessante do mundo, como se ele me dando toda a atenção, eu tivesse inserida em um novo universo em que todo assunto passível de interesse só poderia ser proferido pelos meus lábios.
Conversava olhando tão profundamente em meus olhos, que se perdiam no azul marinho dos seus, que eu quase podia me sentir afogando.
E não havia assunto abordado que lhe era estranho. E nem palavra que eu falasse que ele não admirava sendo pronunciada.
Suas sobrancelhas faziam um vinco no meio e mostravam a seriedade com que encarava o fato de que eu estava falando. Até os chiados da minha pronuncia péssima, ele gostava de ouvir.
Eu estava me afogando num mar de luxuria, a unica coisa que me fazia voltar era o vento incessante que assobiava quando passava pelos meus cabelos e sacudia meu corpo já bem resfriado pelo fim de primavera daquele dia.
Então ele começou a falar. Sua voz grave e levemente rouca me fazia vibrar como um vidro vazio e me preenchia com sensualidade.
Era um assunto qualquer que eu nem me lembro, mas usávamos nosso melhor vocabulário quase como que para impressionar um ao outro, algo totalmente desnecessário pois estávamos deslumbrados um com o outro. Eu nem sabia que existia no mundo homens assim, que se interessam tanto pelo o que uma mulher pode dizer. 

Desci lentamente minha cabeça até seu ombro e senti um calor me invadindo, vindo diretamente de seu corpo. Percebi que foi pego de surpresa pois houve uma pausa inesperada na frase que dizia na hora. E as pernas que estavam cruzadas foram soltas, a mão direita pousou suavemente em minha coxa. 


Então depois houve uma pausa longa. 

Não precisávamos de palavra alguma. O cheiro dele me inebriava e o leve repousar de sua mão em cima de minha coxa fazia eu sentir uma especie de corrente eletrica que passeava por todo o meu corpo, prevendo algo. 

Levantei a cabeça e olhei bem em seus olhos, e então fui invadida. 

Sua mão antes sobre minha coxa me puxava para si pela jaqueta que eu vestia, e a outra enlaçou minha cintura, tudo absolutamente devagar e sensual. Eu queimava, porque me bastava. Eu sabia que iria queimar junto dele e inebriá-lo com meu calor. 

Terminamos o primeiro ato num quarto de hotel sem nome com a sensação de que nos conhecíamos há mais de um século e um sorriso imutável na boca, mesmo que aquele ato não significasse nada para nós na hora seguinte em que cada um entrava em seu veículo e seguia para lugares totalmente diferentes como os dois estranhos que éramos. 


Les Amants - 1928 - Magritte
*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência*



terça-feira, setembro 11, 2018

Acalento

Passei a mão em suas costas.
Estava coalhada de verrugas minúsculas, pintas marrons e manchinhas que pareciam Coca-Cola. Parecia exausto, exalava cheiro de cigarro e tinha a pele desgarrada do osso. O corpo estava pesado de bruços na cama ao meu lado.
- Não consigo dormir. Faz três semanas que não durmo.
- Tente se lembrar de algo que te faz dormir, um afago, leite com mel, sexo oral.
Virou-se de costas para mim, de lado na cama. Afaguei seu cabelo lentamente enquanto encostava meus seios quentes em suas costas. Tentei fazer meu corpo encaixar perfeitamente na curva das suas costas enquanto fazia cafuné.
- Eu poderia dormir assim.
Beijei suas costas mil vezes lentamente, e igual um gato passei a lateral do rosto em seu corpo. Repousei meu queixo em seu ombro, exalando suavemente meu cheiro para suas narinas inalarem, hidratante de ameixa pós banho. Então estendi um braço por cima da lateral de seu corpo dando a volta no abdômen e prendendo-o em mim. Comecei um embalo lento, morno e relaxante entre nossos corpos nus enlaçados embaixo de um cobertor, que lembrava um ninar de criança.
Dormiu. A face relaxou de tal forma que parecia outra pessoa. Talvez fosse.

Egon Schiele - The Embrace 1917


sexta-feira, agosto 24, 2018

estrela

Existiu um dia uma estrela
Uma bonita e brilhante estrela
E um dia o universo a dividiu em duas, separando a energia dela
e cada metade virou pó de estrela
Uma delas virou uma moça de origem simples, de família humilde, de jeito prático e mãos hábeis
A outra metade virou um rapaz inteligente, com dom de comunicar, de entender e de repassar conhecimento
Mas era engraçado como essa energia que habitava ambos funcionava
Uma parte se sentia sozinha carente da outra
E outra parte não funcionava com clareza
Porque o que era certo de estar junto, só haveria de funcionar junto
Então um dia as duas metades da energia da estrela se encontraram
E foi como se nunca tivessem de se separar
Tudo foi reconsiderado
A escuta da fala, a visão do sorriso, o cheiro de cada um, o sabor dos beijos
A estrela virou uma só de novo
Dentro do peito de cada um


quinta-feira, agosto 09, 2018

Política, sexo e batizado.

Quadra lotada, discurso inflamado correndo solto no microfone, bandeiras e gente emocionada por todo lado. Eu jovem suada procurando pela baixa arquibancada da quadra um espacinho para sentar e acompanhar os discursos que se seguiriam naquela noite de reunião partidária. Aí vi o Carlos me acenando e num sorriso rápido me sentei ao seu lado.
Carlos era filho de companheiros de partido que eu tinha muita estima, como se fossem meus avós. Havia sempre aquele instinto de protegê-los por conta da idade avançada, de carinho e de admiração acima de tudo. Mas neste dia eles não foram, Carlos estava sozinho. E estava sorridente. Entre um discurso e outro, trocávamos comentários sobre o evento.

Toda hora que eu encarava Carlos, me lembrava de um episodio em que o pai dele me disse "eu gostaria muito que o Carlos tivesse arranjado uma menina igual você. Porque você se encaixa nesta família como uma luva!". Isso nunca saiu da minha cabeça porque até então, eu via o Carlos como mais um companheiro de partido que compartilhava comigo de várias opiniões e visões sobre a conjuntura política do país, mas depois desse dia mudou tudo. E eu percebi que pra ele eu nunca fora só uma companheira de partido.
Carlos ficava nervoso e sorridente demais ao meu lado. Em outras ocasiões, queria impressionar, e era até engraçado perceber isso. Era tudo muito sutil, já fazia um ano que eu havia me aproximado dele e de seus pais e só percebi depois do comentário recente de seu pai sobre a preferência por mim.
Passei a notá-lo reparando nas covinhas, no jeito de empurrar os óculos em cima do nariz, no jeito de gaguejar meio fofo durante as reuniões quando eventualmente fazia algum comentário.
Mas eu vinha numa fase da vida íntima onde expectativas não foram atendidas, então ainda estava tudo meio paralisado.
Neste dia de discurso na quadra, eu voltei no carro de Carlos. Ambos estávamos animados pela enxurrada de coisas boas que ouvimos nos discursos, e quando estávamos perto da minha casa eu senti vontade de ficar mais tempo com ele e continuar conversando até se esgotar. E acabei revelando isso. E ele ficou sério, já na porta de casa e não dava para imaginar o que se passava na cabeça dele.
Então eu dei um beijo bem lento na bochecha e saí do carro.
Bom, eu não poderia ser mais clara que isso.
Aí a conversa ainda se estendeu pelas redes sociais até de madrugada, com direito a cantadas da parte dele mas nada que fosse conclusivo. Eu gostava disso, do flerte.
Dias depois enquanto saía do trabalho, percebo um carro me seguindo devagar. Era ele.
Entrei e achei que iriamos conversar como sempre, mas quando olhei para Carlos, percebi uma coisa que eu não via em um homem ha muito tempo: era desejo. Deixava ele tremulo, recuando nos movimentos que queria fazer com precisão, dirigia quieto, e eu ouvia sua respiração.
Puxei um pouco de conversa que ajudou a confirmar aquilo tudo, estávamos pegando fogo.
Liguei o rádio e antes que pudesse perceber, já estava na casa dele, no quarto dele, sendo engolfada pela sua boca que me procurava sedenta, inebriada pela respiração forte dele que sorvia meu cheiro, usava mãos como ferramenta de arrebatar, de saciar, e usava todo o corpo de movimentos repetitivos e profundos que ora me calavam, ora me soltavam sons altos desconexos e colados um ao outro, tivemos o orgasmo mais cultivado e imaginado das últimas semanas, tamanha intensidade.
Eu me senti fêmea fatal que esbanjava prazer quando depois do sexo, percebi suas mãos passeando em mim. E seus olhos focados em cada curva dos meus seios, coxas e boca. Transamos a noite toda, de todas as formas possíveis.
Carlos pegou no sono e eu não consegui. Fiquei projetando várias coisas na mente, uma delas muito clara era um batizado com os pais de Carlos, nós dois e um bebê.
Me levantei e fui embora.
Nunca mais fui a nenhuma reunião política, nem na casa dos pais de Carlos, muito menos procurei me encontrar. 
Eu era uma gata de rua, eu gostava de sexo e só. E Carlos não, ele era um gato de raça que você paga caro para ter, tem que cuidar bem e exibir para as pessoas.
Hoje eu vi numa rede social: Carlos, seus pais e uma moça segurando uma menina recém nascida num batizado.


La dama de la Alhambra - Ramon Manrique - 1996




*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência*

segunda-feira, janeiro 08, 2018

vias de fato

Havíamos ido visitar um ex-professor da faculdade que estava se divorciando portanto vivia muito solitário e gostava de nós, os desajustados. Janaina se ofereceu para nos levar de carona, então em seu carro fomos eu, o impronunciável, Alice, Denis e Janaina guiando, é claro.
Foi uma noite agradável, depois de tanto tempo sem sair juntos, ainda éramos os mesmos desgraçados da cabeça de sempre, mesmo faltando Vinicius que àquela altura já havia se mudado para o interior estudar Filosofia. Roger já não fazia mais parte do bando, e eu e João tínhamos ficado meses brigados sem ao menos conversar, fingindo negar a existência um do outro, as pazes era algo recente, fresco batendo em nosso vazio interior que outrora era preenchido pela presença do outro. Mas essa parte da história fica para outro dia.
O objetivo dessas histórias todas é retirar da minha mente qualquer alusão a pessoa a quem eu me refiro como impronunciável, que para quem acompanha a série "Janeiro" o nome já foi revelado, e tacar no papel este monte de besteiras ricamente insignificantes.
Pois bem, nem preciso mencionar que eu seguia apaixonada, pouco mais de um ano depois de tê-lo conhecido, de ter formado o grupo de amigos da faculdade, etc. Eu me sentia a mais imatura do grupo e talvez fosse mesmo.
Na volta da casa do professor, já de madrugada, eu tive dó de fazer Janaina viajar 25 km São Paulo a dentro só para me deixar em casa e a pedi para me deixar no centro de São Paulo. Não prestei atenção direito e vi que outra pessoa pediu o mesmo a Janaina, eu já estava meio alta de gim tônica e distinguir vozes nunca foi uma qualidade minha.
Quando eu só podia ver as luzes traseiras do Celta da Janaina me deixando na Consolação é que me dei conta de que estava a sós com João. Sem transporte público para voltar pois eram 2h da madrugada. Sem dinheiro vivo, sem caixas eletrônicos 24h por perto. Ventando bem frio em pleno mês de junho e eu estava sem qualquer blusa mais grossa.
A vontade era chorar, sentar na calçada e verter lágrimas sem fim, mas João estava incansavelmente bem humorado. Resolvemos beber num boteco ali perto.
E bebemos uma Maria-Mole. Duas. Três. Depois um Rabo-de-Galo como saideira e rumamos para uma praça perto dali onde o vento fazia um "zum" interminável.
Eu tremia quase que automaticamente, não sentia frio mas não conseguia fazer meu corpo parar de tremer. O termômetro de rua indicava 11 graus. De repente, em uma daquelas ideias idiotas típicas de bêbados, eu pensei em me declarar para João naquela noite. Ora, já havia meses que eu estava sofrendo aquele desejo que me queimava por dentro como uma grande chama no meio de uma noite longa e fria, tal qual aquela que vivíamos.
Falávamos banalidades, sobre jogos, sobre mulheres, sobre musica, sobre nosso futuro na profissão que escolhemos, e então sem me lembrar exatamente como, João deu de falar sobre seu pai.
Acontece que o pai de João possivelmente havia sido um canalha. Abandonou a mãe ainda grávida, casou-se muitas vezes depois com mulheres jovens que ia trocando conforme elas envelheciam. Quando adquiriu câncer de pulmão, veio procurar João dizendo que se arrependeu de ter sido um pai ausente. E o impronunciável caiu nessa, carente de pai que era. E quando estavam se conhecendo e indo tudo bem, o pai morreu.
João era o pior orfão de pai que eu conheci. Desatou a chorar e falar de seu velho, e eu que antes de tudo era sua confidente, ouvi e consolei a perda que era recente, mas não tão recente quanto nossa amizade. E desisti de me declarar, naquele momento comecei a reconsiderar o porquê havia me apaixonado por João.
Bom, se fosse fácil descobrir o motivo, nada da nossa história haveria acontecido, tampouco estas histórias tolas ladras de tempo.
Um rapaz passou vendendo brigadeiros e eu na maior inocência, comprei uma para cada um achando que chocolate daria um jeito na nossa bebedeira (na realidade, na bebedeira de João, o dramalhão dele havia cortado meu barato). Devoramos os brigadeiros e uma chuva torrencial caiu. Corremos para nos esconder dela através de uma ladeira, descíamos quase junto com a chuva que formava pequenas quedas no meio-fio. Encharcados, começamos a rir muito, a sensação era de estar numa montanha russa, a rua dançava diante de nós, o chão fazia ondas igual uma praia. Uma praia de chuva, escuro e frio. Rimos muito enquanto descíamos a rua na chuva e quando finalmente encontramos uma marquise para nos esconder, João me beijou. Me prensou na porta fechada de um estabelecimento, me deu um beijo tão profundo que alcançou minha alma. Eu explodia de felicidade, um minuto que eternamente em minha lembrança durou anos do mais sincero reflexo da felicidade. E desejo, e meu corpo transformado em pura tremedeira, pernas completamente bambas, mente atingindo o nirvana da satisfação amorosa.
O beijo acabou, a noite virou manhã que viramos comendo salgados numa padaria.

Algum tempo depois, eu perguntei para João desta noite sem mencionar o beijo.
Ele disse que não se lembrava de nada, a ultima coisa em sua lembrança era que ele chorou e eu havia comprado brigadeiros.

Malditos brigadeiros de maconha.








***esta crônica faz parte de um conjunto de crônicas que tratam dos mesmos personagens, todas identificadas com o marcador "Janeiro"***


quarta-feira, julho 26, 2017

o que nunca viveu não pode morrer

Sempre gostei da madrugada. Parece que havia um cheiro diferente no ar, quase como se algo sensacional estivesse para acontecer. Acendi um cigarro, sentei na beira da calçada e fiquei vendo os carros passarem numa avenida perto de casa.

Fazia um mês que meu pai havia morrido. Eu estava usando uma camisa azul marinho de veludo canelado que foi dele nos anos 80. Não era nem perto do que seria um abraço dele, mas era o que eu tinha.
Desde que ele morreu eu não conseguia deixar de pensar no período que me separei de Soraia e passei umas semanas na sua casa. Foi logo antes de saber que eu seria pai. Logo antes dele descobrir o câncer.
Ele acordava carrancudo aos domingos mas saía parecendo um jovem que buscava se exercitar. Chegava a ser fofo, aquele homem velho com barba de bode que sempre que tomava café a deixava úmida da bebida, pegando sua bicicletinha e saindo para pedalar. Voltava bem humorado, cozinhava uma comida ruim e eu zombava dele o resto do dia.
Me contava histórias as vezes reais, as vezes mirabolantes, mas nunca deixava de me contar.
Sempre me contava sobre como era sua vida quando descobriu que ia ser pai da minha irmã, Evelin.
Ele foi embora e é como se tivesse uma torneira pingando pra sempre nas nossas vidas. Mas a torneira da Evelin pingava bem em cima de sua cabeça, e cada pingo parecia um martelo batendo, batendo.
Evelin chorou até desmaiar no velório dele, e nem eu nem ninguém a vê desde então. Ela pediu para botar na lápide "o que nunca viveu não pode morrer" mas ninguém concordou porque ele só não viveu em sua vida. Na minha e na das demais pessoas ele era o cara que enquanto estivesse na área, era certeza de gol. Sinto falta dele, e tenho pena de Evelin, nunca vai sentir de fato a falta que ele faz enquanto para ela, ele for apenas uma enorme chama de remorso queimando tudo a sua frente.


"Black and blue
And who knows which is which and who is who?
Up and down
And in the end it's only round and round and round and round"

quarta-feira, maio 24, 2017

Você só vive uma vez

Pablo, eu tinha 23 anos, trabalhava na IBM na época, me matava de trabalhar.
A mãe de sua irmã tinha ido viajar para o exterior fazia um mês, e fazia uns dois que havíamos rompido o namoro.
Não era para Alice ter sido tão importante, eu havia conhecido pela internet, tomamos uma cerveja e quando percebi, eu estava na casa dela. Ficamos algumas vezes que durou alguns meses. Brigávamos mais do que transávamos.
"Eu não quero ouvir essas coisas, pai."
Mas vai ouvir, viu, vai ouvir porque você ta num momento muito delicado e especial e eu só posso te oferecer isso, meus conselhos.
Então, dois meses depois que concordamos que não dávamos certo, ela me liga lá do outro lado do mundo dizendo que estava grávida.
"Era da Evelin?" Sim, era da Evelin.
Alice voltou pro Brasil com 6 meses e um barrigão, falou comigo rapidamente um dia desses e voltou pra terra dos pais dela, já estava enrabichada com um tal de Tom.
Tentei acompanhar a gravidez mas naquela época era muito complicado, a moeda de lá era cara, tudo era caro, não dava pra simplesmente atravessar o mundo pra cuidar da menina. Então quando a Evelin nasceu, eu ainda demorei uns 5 meses pra conseguir viajar.
Sua irmã era bonitinha, cabelo bem farto e preto igual o meu era. Covinhas nas duas bochechas e o sorriso igual da Alice. Eu me apaixonei por ela, o bebê mais lindo que já vi.
Voltei pra São Paulo com o coração partido. Comecei a trabalhar ainda mais e comprava brinquedos, roupas, ia estocando tudo. Foi na época que morei no prédio do João, a casa era uma zona de brinquedos. Foi a época mais agonizante da minha vida, vivi 5 anos assim, viajando uma vez por ano pra ver sua irmã e sendo massacrado pelo trabalho aqui no Brasil. Eu vivia apenas para isso, e tinha que lidar com toda aquela pressão, aguentar ver Evelin chamando o Tom de papai, Alice me odiando e não cooperando e eu sem um puto pra ajudar eles a criarem a minha menina. Meu dinheiro aqui do trabalho da IBM não valia de nada.
Aí eu abri a livraria e o resto você já sabe, me arranjei, conheci sua mãe, amei muito ela, Alice veio para o Brasil e eu pude ter mais contato com Evelin, ser pai dela de fato depois que o Tom sumiu.
Quando estava tudo bem, sua mãe me anuncia a sua gravidez. Porra, um menino! Pra comer tremoço e ver jogo do Ituano comigo, era tudo o que eu queria! Eu tinha a oportunidade de fazer com você tudo o que não consegui fazer com sua irmã.
Só que você sabe né Pablo, eu tive muita sorte. Sua mãe era uma jóia.
Se tem uma coisa que você precisa guardar dessa coisa toda que te contei agora é: dê valor a esse tempo agora que seu bebê vai nascer. Cuide bem de quem você ama. Aproveite o seu bebê, cada minuto com ele. Não seja o pai que eu fui para sua irmã...
"Você não teve culpa, pai..." Eu tive, filho, tive sim... e vou levar essa culpa para sempre. O tempo é implacável, Pablo. Eu perdi Alice, Evelin, sua mãe e minha juventude. Tudo o que eu posso fazer é tentar impedir você de cometer os mesmos erros que eu. Então cuide bem do meu neto, ensine tudo o que puder,  porque o tempo não volta, o tempo só avança nessa brincadeira sádica que é a vida.






quinta-feira, abril 20, 2017

Separação

Pablo separou da mulher.
Pediu pra passar uns dias em casa, chegou quarta-feira com o videogame e uma mala de roupa.
Perguntou algumas coisas, se eu tinha alguma diarista, como eu comia. Dei o numero do restaurante que me vendia marmitex e disse que vez em nunca eu chamava uma moça pra limpar. Perguntou se eu não tava comendo ninguém, dei risada.
Na sexta a noite, fui na casa do João jogar conversa fora e comer tremoço com cerveja. Contei pra ele que agora meu filho estava morando comigo, como era antigamente. Havia me dito que a mãe estava na Bahia com os parentes, que só por isso tinha ido para minha casa.
"E você não se ofendeu em saber que é a ultima opção do seu filho?" perguntou. Eu não me ofendi. Deve ser bem chato morar com um velho ranzinza de 60 anos que fuma e bebe como um gambá e só sabe reclamar de como São Paulo está ficando chata.
São Paulo está ficando chata. Se tem grafite reclamam, se não tem reclamam que não tem. Manifestação todo dia, que galera chata.
Mas até que algumas coisas vem para o bem. Eu por exemplo nunca mais peguei trem e metrô porque agora só ando de bicicleta.
Domingo eu levantei cedo e fui de bicicleta até a Vergueiro comprar uns legumes. Tenho saudades de quanto era vegano. Mas não tenho mais bolso para isso não, Tofu está caro, soja é caro.
Quando voltei, Pablo estava acordado só de cueca jogando videogame na sala. Já ia lá pelas 11h, agora eu entendia porque a mulher pediu separação.
Liguei para a mãe dele "Escuta aqui, você não vai voltar para São Paulo não? O Pablo ta aqui só de cueca na minha sala jogando Playstation" ela riu "Ai Aurélio, você sempre amoroso comigo e com seu filho né" e então me disse que demoraria mais algumas semanas para voltar.
Pablo me disse que ela estava casando pela segunda vez, com um cara de sua idade, um cara também divorciado, e também com filhos. E de repente eu me senti velho demais.
Quando conheci a mãe dele, ela tinha 21 e eu 39 anos. Eu já tinha uma barba branca de bode que levo na cara até hoje. Exibia Juliana ao meu lado tal qual uma joia, uma obra de arte. E ela era mesmo, e fazia eu me sentir com 21 anos também.
Mas acho que enjoamos um do outro, acabou o mistério e o companheirismo foi substituído pela obrigação de estar.
Aí um dia ela mudou e eu não liguei.
E eis que estou nessa vida até hoje.

"Nasci para satisfazer a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo."
Jean-Paul Sartre

É tempo de reciclar

Recentemente, li um artigo que fazia uma previsão de como seria o mercado têxtil nos próximos 15 anos. De forma geral, ele falava sobre a crescente demanda de reformar roupas antigas que voltam a moda, falava sobre pessoas que preferem comprar tecido e confeccionar a própria roupa do que ter que enfrentar lojas e preços nem sempre condizentes com a qualidade da peça. 
No ramo dos móveis, é notável o crescimento de revistas e programas de TV que estimulam a reforma de móveis antigos ou usados, até que tal objeto fique como novo. 
Desde que a crise econômica internacional se instaurou no Brasil, reformar, restaurar, reaproveitar e reciclar vem sendo lemas bem difundidos na sociedade, com alimentos, objetos, brinquedos, livros, água da chuva, etc. 
Porém segundo a revista Exame, o Brasil ainda tem um longo caminho pela frente, uma vez que sendo a meta mundial de 50% de reciclagem e nosso país vem atendendo apenas 13%. 
Países como Áustria e Alemanha já atingiram a meta de 50% cujo o prazo é até 2020, cerca de 1% de seu PIB já advém desse reaproveitamento. 
Mas também é fato de que falta iniciativa governamental para que a meta seja batida. 
No Mato Grosso, por exemplo, a falta de lugares apropriados para reciclagem de vidro já é de conhecimento geral. Pilhas de garrafas se acumulam pois a unica forma de reciclar as garrafas seria trazendo até São Paulo, que é um procedimento caro. Nas estações mais quentes, o acumulo de garrafas passa a ser um problema que afeta a saúde dos mato-grossenses, uma vez que acumula água da chuva dentro dos frascos, facilitando a proliferação de mosquitos transmissores de doenças. 
Paralelamente a isso, devido a imensidão de nossa terrinha, em Caxias do Sul, ainda na onda da reciclagem (e todos agradecem), uma empresa desenvolveu um tijolo de construção feito de garrafas pet encontradas no lixo. 
No Nordeste, garotas estudantes do Instituto Federal do Alagoas criaram um tijolo a partir de cinzas de cana de açúcar e foram premiadas por isso. 
Existem mil maneiras de reciclar, seja com uma coleta seletiva, com a reforma de uma calça ou reaproveitando água, uma vez que o termo deixou de ser sinônimo de apenas reaproveitar resíduos e passou a significar a esperança de um mundo menos entulhado de lixo. 
E é de interesse do interesse de todos, reciclar está na moda e faz bem, então mãos a obra?