sexta-feira, abril 29, 2016

Teoria do Céu


Você sabe que tem uma rotina chata e desgastante. Você tem plena noção de que se pudesse, nunca perderia seus preciosos dias dentro de um escritório fazendo coisas que não te dizem respeito.

Você sabe que gostaria mesmo era ver aquele sorriso que você ama, da pessoa que você ama mais, sabendo que aquela é uma imagem que você nunca mais vai se esquecer, aquela linha perfeita de dentes brancos te sorrindo, cuja a vontade, é a de ter todos os detalhes, todas as voltas daquele sorriso para si.

Mas aí você se dá conta de que na vida, o que mais há é contradição. E olha pro céu procurando a paz que precisa para formular suas conclusões sobre os momentos de frustração, procurando respostas, ou as perguntas certas, tentando evitar as verdades absolutas, tentando não lembrar, não pensar toda hora, se concentrar, e virar a cabeça pra baixo. Mas também é olhando pro céu que você mais se lembra, se flagra sorrindo sem querer lembrando do cheiro, do tom da voz numa risada, da sombra recortada numa luz fraca. É reconfortante imaginar que você não é o único a olhar pro céu, que o mesmo céu que te banha, é também o céu que cobre a pessoa a qual pertence o sorriso amado. É reconfortante pensar que mesmo longe, estão perto, que mesmo em mundos diferentes, ainda existe um céu que os cobre.

Para dias chatos comuns, para momentos ruins normais, olhe para o céu.


quarta-feira, abril 13, 2016

Quatro Carolinas Por Favor

Frio batendo na bochecha toda vez que a porta do trem abre. Mas do pescoço para baixo, o corpo é só um pedaço do enlatado que o trem se transformava as 6 da manhã de Francisco Morato sentido Luz, em São Paulo. Um amontoado de gente que faz com que a ideia de se mexer pareça algo ousado.
Já na estação da Luz, o amontoado agora ousa se mexer e ruma sentido qualquer uma das portas de saída, como bois criados em confinamento.

2014. Maio. Estava chovendo, levantei o capuz do moletom para não estragar a lobeca caprichada pro trabalho.
Passar no meio dos mendigos era rotina, precisar de dinheiro todo mundo precisa. "Não tenho moeda moça, se quiser eu tenho um pacote de bolacha aqui", abri a bolsa e entreguei o pacote de Triunfo na mão da criança que uma moça moradora de rua segurava enquanto me pedia dinheiro.
Pede dinheiro e ganha comida, devia estar feliz.

Cheguei na Padaria "Princesinha do Riskallah", vesti o avental, coloquei a touca cuidadosamente para não estragar o penteado, "bom dia Sr Jorge", "bom dia meu filho" liguei a chapa e comecei.
Pão de queijo, Sonho, Língua-de-sogra, Pão na Chapa, pingado com açúcar, não, sem açúcar, capuccino, café puro, Misto Quente, Pão com Mortadela, requeijão e Carolinas.

Carolina morava num prédio ali na frente da padaria e eu a atendia todo dia. Cheirosa, morena, alta, esperta. Pedia 4 carolinas e ia-se embora. Eu tímido, ficava olhando ela desfilar pela padaria todo dia sem conseguir articular qualquer coisa. Vez ou outra ela conversava com Seu Jorge, o dono da padaria, falava sobre política e rumava para Santa Ifigênia com um aroma de calêndula que ficava para trás.

Esqueceu o celular em cima do balcão naquele dia, peguei antes que qualquer um visse e enfiei no bolso da calça. Entregaria a ela pessoalmente, como uma missão.

A caixa da padaria, Dona Adriana, esposa do Seu Jorge, suspeitava que eu tivesse algum tipo de interesse em Carolina, porque sempre que ela ia embora eu ficava acompanhando com o olhar. Dizia ela "Sossegue menino, Carolina não é pro teu bico, se engrace com essas meninas que frequentam os bailes que você vai la na sua área".
Eu era chapeiro, negro e da periferia, frequentava baile funk e roda de rima, usava camiseta larga e mostrava a cueca. Não estudava mais porque tinha que trabalhar muito e contribuir em casa.
E uma moça poderia me rejeitar por ser assim, eu jamais entenderia.

Depois do trabalho na padaria, rumei pro segundo emprego, ainda com o celular no bolso,
Pouco antes de entrar no prédio da Contax, lá no Brás, olhei para ver se tinha alguma coisa, e em questão de segundos um menino veio correndo e tomou o aparelho da minha mão.  Joguei a mochila e saí disparado atrás do moleque em pleno horário de almoço abarrotado de carros parados na  Rua Piratininga. Ele entrou por uma viela, se escondeu numa casa muito pequena e bateu a porta, comecei a esmurrar a porta e nada. Saí, e mal sabia o que pensar, o que fazer, mas eu precisava pegar de volta o celular de Carolina. Pessoas entravam e saiam, a viela era uma pequena vila com varias casinhas humildes, um chão de cimento quebrado com um enorme esgoto aberto, coisas que já não eram novidades para mim. Comecei a interceptar as pessoas e elas se afastavam como se o ladrão fosse eu, mas, por deus, eu era a vítima!

Um homem se propôs a me ajudar. Alisava o bigode enquanto eu contava para ele como fui roubado, depois começou a bater na porta da casa onde estava o ladrão, chamando por um nome, "Pinote".
"Ô Pinote, saí aí vamos conversar, se não sair o moço vai chamar a polícia".  A porta abriu e saiu o ladrãozinho que agora eu já sabia que era chamado de Pinote. Não devia ter nem 14 anos ainda,  uma criança menina de uns 2 anos descalça e com roupas imundas, cabelo igualmente imundo, e um rapaz de uns 19 anos, parecido comigo, roupa larga, cueca a mostra, boot no pé, piercing na sobrancelha e um bigode fino na cara. Saiu gingando, não vi o celular.

A conversa foi longa, se é que poderia chamar de conversa. Varias frases como "Cê ta ligado que a fita é essa e o bagulho é doido" depois, o resumo: eu teria que pagar pelo resgate do celular, e o malandro era duro na negociação. Como se tratava de um celular caro, queria que eu pagasse uma parcela de um carnê de sua moto, e já vinha com o carnê no bolso.
Àquela altura, eu fodido e atrasado no trabalho, comecei a rir. Pagar pra malandro devolver o celular que ele roubou, mil dinheiros nisso?
Quando ri, o Pinote disse "Falei que ele não ia aceitar Dinho, vamo vender e cê paga o carnê".
Olhei para o senhor de bigodes, ele fez um gesto como "não vai ter jeito rapaz". Dinho pegou o celular do bolso "iPhone 6 né? acho que até sobra moleque" .
Meu sangue ferveu. Deixar malandro crescido me passar para trás estava fora de cogitação.
Desferi um soco no tal de Dinho e tomei o celular, em questão de segundos. Saí correndo pela rua, voltei pela Contax e vi minha mochila "graças a deus a mochila". Quando virei a esquina da Rua da Alegria, não vi ninguém atrás de mim.
Já não ia mais trampar no segundo emprego aquele dia, então que se foda, iría para a Luz e entregar o celular a sua dona.
Desci na Sé, fui até o Largo São Francisco e vi o sol se por. Era cedo ainda.
Será que Carolina estava preocupada? Qual seria sua reação quando eu o entregasse?
"Oi Diego, tudo bem? O que você faz por aqui essa hora? A Padaria já fechou não?"
"Sim Carol" (poderia eu chamá-la de Carol?) "Você esqueceu seu celular, toma ele aqui"
"Oh muito obrigada! Gostaria de entrar e tomar uma água" e pronto, aí era eu e a morena.
Rumei para a Luz novamente, com  o pensamento só nela. Metrô lotado, suor, gente cansada, preferi descer no Anhangabaú.
E que má sorte, a policia militar me enquadrou na saída da estação e revistou. E ofendeu. E achou o celular. E para minha surpresa, o celular estava com a tela trincada. Trincou e eu nem vi, como entregaria o celular para Carolina daquele jeito?
Gambé olhou para mim com deboche, depois falou para os outros, "pode liberar, esse aí roubou um celular todo estourado", "eu não roubei" disse. A resposta do bota-preta foi um tapa na cara e a tela do celular trincada ligada com a foto de um cachorro com um laço na cabeça de fundo, bem no meu rosto.
Saí revoltado, humilhado e fui para a frente do prédio que sabia ser onde Carolina morava.
Eu ia devolver o celular assim mesmo.
Subindo a rua, vejo Carolina a minha frente voltando do trabalho, dez passos de distancia. Grito seu nome, mais de uma vez, e ela parece não ouvir. Corro a sua frente e digo "Oi". Ela se assusta mas me reconhece.
"Oi Diego, ta tudo bem", diz preocupada.
"Oi Carolin-"
"Eu não me chamo Carolina, me chamo Samanta" me interrompeu, séria, me encarando. "Seu Jorge me chama de Carolina porque compro carolinas todo dia no café da manhã".
Meu pensamento era só um: eita. Mostrei o celular para terminar tudo isso logo. Ela olhou e voltou a me fitar. "Não é seu? Não esqueceu no balcão hoje cedo?"
"Não", e me mostrou seu celular em sua mão, inteirinho.
Olhei para o chão, pensei em todas as coisas que me ocorreram por causa daquele celular e balbuciei "Ah então beleza, vou embora então".

Virei e saí querendo nunca mais ver Carolina/Samanta na minha frente e decidido em parar de ser vacilão com as mulheres.

"Você não quer uma água?" disse a moça sorrindo. Eu sorri de volta e subi para seu apartamento.

Até hoje não sei de quem é o celular.










segunda-feira, abril 11, 2016

O impronunciável

“Denis anda tão preocupado. Denis, todos cometem pecados.”

Eu nunca quis ser a Inês do Denis, mas acabei sendo.
E por um tempo foi bem divertido.
Numa noite éramos pichadores, e com alguns sprays desenhamos pênis voadores em todo o viaduto Jaceguai. Outro dia, éramos escaladores, e escalamos a estação de metrô do Brás. Sempre sorrindo, a mão de Denis estava sempre estendida para mim.
Ele era ridículo e não tinha vergonha nenhuma de ser. E eu embarquei na onda do ridículo com ele. Gostávamos daquilo, era uma liberdade gratuita que eu jamais experimentara. E então, Denis se apaixonou por mim, e eu me deixei levar por aquilo, curtindo cada risada do lado dele, descobrindo cada parte do corpo dele e interpretando qualquer porcaria que ele falava só para me fazer rir. Me deixei moldar pelo o que ele quisesse fazer de mim, e ele parecia até mais bonito quando a luz da aurora batia na minha janela iluminando parcialmente o quarto.

Ele sabia que ainda havia um animal semimorto habitando meus sentimentos, exalando o cheiro amargo da rejeição de outro. E isso acabava com ele.
Muitas eram as vezes que nos encontrávamos e eu não queria fazer mais nada, a não ser fumar e ouvir algumas músicas do Lulu Santos. E ele ficava me olhando, até que um dia ele perguntou qual era o nome do indivíduo que me deixou assim de coração tão partido. Olhando diretamente para os olhos dele, soletrei cada letra do nome do melhor amigo dele.

 Ele sabia de tudo, ele era da nossa panela de amigos, ele acompanhou minha história do coração partido inteira dos bastidores. E ele sabia que eu não podia gostar de ninguém porque amava o outro lá, o que me trocou pela Alice. O impronunciável. Que era o melhor amigo dele, e o responsável por ter nos unido numa brincadeira sem graça de terminar o namoro comigo e me colocar frente a frente com Denis.

Mas só muito tempo depois que eu entendi porque ele me perguntou.
Porque só saber não era o suficiente. Ele queria ouvir de mim se eu ainda amava o impronunciável. E quando eu soletrei o nome dele, era o que ele precisava saber. Eu amava de um jeito tão forte e intocado, que nem todo o amor do mundo vindo de Denis era suficiente para que eu ignorasse a existência disso.

Um dia de chuva, eu estava a esperar a chuva passar para sair da faculdade e ir a casa de Denis, pois ele estava gripado. E sorrateiramente, o impronunciável apareceu, com um aroma diferente do que eu conhecia.

 Eu meio dispersa, ele começou a puxar assunto. Perguntou de Denis, perguntei de Alice. E ele me informou que terminara o namoro com Alice.

 Eu ainda queria matar os dois, especialmente ele, mas naquele momento eu só queria o sorriso dele. E ele, inteiro, como quis por muito tempo.

 Então ele começou falar que se sentiu arrependido e que tinha sido um grande erro que ele me quisesse só como amiga.

Porque ele sentia falta de mim todos os dia, falou. E que vinha ensaiando me procurar há dois dias, desde que terminou o relacionamento com Alice. Eu chorando, saí andando na chuva, sem olhar para a cara dele porque, por deus, só eu sabia como estava sendo difícil me desfazer disso tudo. Foi difícil não pensar nele até pouco tempo atrás, quem me dera ser tão resistente naquela época.

Então ele me chamou pelo nome, e veio na chuva em minha direção, eu parei, ainda chorando, ele me abraçou forte e decidido e me beijou, com a camiseta verde encharcada.
“Nunca mais faça isso comigo, se fizer de novo eu acho que morro” falei usando todo meu potencial dramático. E ele pela primeira vez disse que me amava.

Então eu parti o coração de Denis no dia seguinte. E hoje ele está casado com uma esposa linda na Argentina, feliz aguardando o nascimento do primeiro filho.




“Dênis, o destino decidiu que você não tem escolha

Nem mais uma chance pra tentar tudo outra vez"


Graforréia Xilarmônica - Dênis





***esta crônica faz parte de um conjunto de crônicas que tratam dos mesmos personagens, todas identificadas com o marcador "Janeiro"***

sexta-feira, abril 08, 2016

a troca

Claro que havia algo errado. Eu vi os dois sorrindo entre si de um jeito  bem estranho.
Estava eu sentada num banco do jardim que frequentávamos fumando e vendo os dois se aproximarem. Alice com um sorriso estranho de satisfação. Ele com o nariz um pouco mais arrebitado cortando os ventos e como se me desafiando a questionar porque ele estava tão feliz.

Toda vez que ele se aproximava, eu sentia aquele gosto de cerveja choca que lembrava o beijo delicioso que ele me dava. Mas já fazia algum tempo que não tinha mais esse beijo. Nem o sorriso com os dentes caninos levemente saltados, nem mais nada.

Alguns dias atrás ele me deixou na porta de casa dizendo que minha amizade para ele bastava. E eu, histérica, disse “e o meu amor por você, como que fica?”. Estava eu completamente, terrivelmente apaixonada e não sabia o que fazer com aquele sentimento todo rompendo-me ao meio.

Agora, vinha ele com aqueles olhares estranhos com Alice. Eu preferia a morte.
Mentira, não preferia, porque assim nem ao menos o teria de longe.

Entrei num estado de torpor quando ouvi “sábado eu e Alice vamos no cinema” dos lábios dele, horas depois de perceber esses olhares estranhos no nosso jardim.
Eu queria gritar “mas como assim vão ao cinema? Até alguns dias atrás era meu corpo que você passeava as mãos e foi assim nos últimos anos” mas tudo o que consegui era responder “legal, se divirtam por mim”.
E ele continuou me contando seus planos e revelou o mais maquiavélico de todos “você devia ir também com a gente e chamar o Denis”. Então era isso. Além de não me querer mais, ainda queria me empurrar para o amigo de piadas sem graças dele. E eu, que estava possessa e só queria ir pra casa chorar, mas não conseguia nunca falar não para ele, respondi “vou sim, vou chama-lo”.
Até o dia do cinema, eu era a pessoa mais fria do mundo com ele e com qualquer um da nossa panela de amigos. Eu era só dor e destruição, meu sarcasmo transbordava e eu não podia me controlar. Fumando um cigarro atrás do outro, mantendo todos os compromissos mauhumorosamente marcados com ele, seguia eu um poço de soberba e amargura. Porque ele não me queria, porque queria Alice.
Porque ele não era mais meu.
Numa partida de Uno mal jogada, eu perdi. E como pena por ter perdido, todos me desafiaram convidar o Denis para o cinema.
É que era humilhante sair com Denis. Porque Denis era o cara que todos da faculdade zoavam porque nunca namorava ninguém. Porque Denis tinha quilos de espinha na face e parecia ainda ter 16 anos, enquanto todos os outros caras da faculdade já tinham um porte mais másculo mesmo tendo mesma idade do Denis.
Mas chamei para o cinema.
E fui.
E foi como se eu aceitasse que eu e ele havíamos acabado, e que ele e Alice juntos estava tudo bem pra mim. Mas nunca esteve, eu queria matar todos naquele cinema.






***esta crônica faz parte de um conjunto de crônicas que tratam dos mesmos personagens, todas identificadas com o marcador "Janeiro"***