DIA 1
O funcionário novo era muito estranho, o Valter. Ele
estava sentando ao meu lado, nossas baias eram do tipo grandes e separadas por
uma pilha de pastas apenas. Se ele virasse para trás, conseguiria ver tudo o
que eu fazia em meu computador o dia todo. Podia me vigiar.
Eu não gostava dele. Ele parecia ser velho mas ao mesmo
tempo, jovem. Ele não falava claramente, sempre sussurrante e fazendo falsetes,
usando palavras em desuso. Ceroula, carraspana, chumbrega, fuzarca. Parecia ter
engolido em dicionário de 1920. Fiquei incumbida de treiná-lo. Ele faria dupla
comigo.
Em nosso primeiro contato, ele parecia arredio, irritado.
Até sorria, mas parecia estar na defensiva. Tinha muita dificuldade em se
concentrar. Não era totalmente ignorante sobre o trabalho, embora tivesse vindo
de uma outra área diferente. Ensinei algumas coisas básicas pela manhã e voltei
para minha mesa achando que ele não havia aprendido nada, e que ficaria perdido
o resto do dia.
Havia uma pilha de pastas com documentos que ele deveria
analisar e preencher algumas planilhas. Três horas depois de ter lhe passado a
tarefa, ainda não havia feito nem um terço. Como era o seu primeiro dia,
dei-lhe mais tempo. Fui para uma reunião que durou 1h20. Quando voltei ele
havia terminado. “Alguma coisa aconteceu aqui”, pensei.
No almoço, pouca conversa. Parecia longe, disperso.
DIA 4
Valter chegou 20 minutos atrasado. Parecia ter vindo
correndo. Disse que ficou preso no transito local. Semblante pesado, parecia
não ter dormido. Antes dele chegar lhe deixei outra pilha de documentos para
analisar e digitalizar em seguida. Quando chegou, sem que houvesse qualquer
explicação, se pôs a fazer o trabalho exatamente como eu teria lhe instruído.
Fiquei surpresa. Brinquei “temos um Valter Mercado aqui na empresa gente” e ele
riu, aquela risada chata de criança
birrenta, três tons acima da sua voz normal que já era fina. Eu odiava aquilo.
DIA 8
Valter chegou 30 minutos atrasado, como se estivesse correndo,
justificou que era o transito e saiu para tomar um café com o celular na mão,
ficou 15 minutos fora. Eu não era sua supervisora. Não cabia a mim dar broncas.
Mas tanto eu quanto as demais pessoas da equipe olhamos com o olhar de
desaprovação, igual quando alguém tomava um copinho de caipirinha antes do
almoço no restaurante que frequentávamos e que oferecia antes do bufê. Estava
desenvolvendo as tarefas muito bem, mas ainda me passava a imagem de estar
perdido, confuso e inseguro.
DIA 11
Valter chegou incríveis 60 minutos atrasado. Não me deu
justificativa. Chegou com ar cansado, com poucas palavras. Trabalhou o dia todo
quieto. Eu estava irritadíssima, conforme seu treinamento avançava, mais nos
consolidávamos como dupla, que era o formato usado naquela empresa. Eu tinha
uma dupla que chegava atrasado, estava sempre cansado, não passava segurança,
não dava justificativas!
DIA 20
Valter segue chegando atrasado. Reportei a nossa
supervisora ontem. Hoje quando ele chegou 1h atrasado, a supervisora o
chamou para uma reunião. Ficaram muito tempo lá e eu não sei o que aconteceu. Teremos
um evento corporativo daqui cinco dias e eu preciso de uma dupla, não temos
tempo hábil para treinar outra pessoa, portanto Valter não pode ser demitido.
DIA 22
Valter chegou apenas 5 minutos atrasado. Mas falou no
celular de manhã com uma tal de Deise por uns 40 minutos, dava instruções bem
específicas falando baixo naquela voz irritantemente aguda. Ele não havia
cortado o cabelo desde que entrou na empresa e agora estava um estilo meio Luiz
Caldas. Completamente detestável. Ontem no almoço, até que conversamos. Ele era
budista, por isso estava sempre tão conformado. Ele tinha olhos verdes. E tinha
uma cicatriz profunda e feia no ombro, resultado de um acidente de carro. O
acidente tinha cortado ao meio o futuro que tinha como lutador de jiu-jitsu,
uma vez que reduzira os movimentos do ombro. Eu seguia surpresa.
DIA 26
Ontem tivemos o evento que foi em Santos. Valter chegou
15 minutos atrasado, mas deu tudo certo. Na volta, numa van alugada pela
empresa, Valter cochilou pesadamente sobre meu ombro. Eu tinha todos os motivos
do mundo para esbravejar, me chacoalhar e empurrá-lo para longe, mas deixei
ficar.
DIA 30
Valter não veio trabalhar, não deu justificativa. Achei
muito curioso que a postura que nossa supervisora tenha com ele seja tão complacente,
com qualquer outro funcionário da equipe, ela teria no mínimo dado algumas advertências
verbais. Fiquei o dia todo curiosa querendo saber o que raios fez Valter
faltar. Comecei a suspeitar de que talvez seus atrasos não fossem relaxos ou
transito.
DIA 37
Valter alegou para mim estar fazendo um tratamento e que
por isso teria que sair duas horas mais cedo, e que havia combinado com nossa
supervisora. Tinha olheiras. Estava sempre com ar confuso, perdido. Eu gostava
de conversar com ele. Tínhamos gostos muito parecidos, cultura pop japonesa,
gastronomia, política. Nem lembrava mais de odiar a risada infantil, o cabelo
de Luiz Caldas e sua baixa estatura, que em algum momento anterior me irritou.
Mas eu queria saber o que realmente estava acontecendo.
Pensei que talvez ele tivesse usando drogas.
DIA 42
Valter estava com o rosto completamente inchado. Demorava
30 minutos no banheiro sempre que ia. Eu tinha quase certeza que estava usando
drogas. Mas gostava quando puxava algum assunto e ele parecia uma Wikipédia
Humana, destrinchando tudo para mim. E ele falava japonês fluentemente.
DIA 47
Valter chegou usando uma camisa abotoada errado, cabelo
preso num mini rabo-de-cavalo. Perguntei quando ele iria cortar o cabelo, fez
um muxoxo. Estávamos aos poucos ficando íntimos. A barba também estava por
fazer, mas achei bonito assim, másculo.
Quando queria algo, chegava igual uma criança sorrateira
e dava um puxãozinho no meu cabelo. Eu seguia o chamando de Valter Mercado. No
almoço, ele fingia adivinhar o prato do dia. Ele era muito engraçado e estava
sempre tranquilo embora cansado. Tínhamos outro evento dali alguns dias.
DIA 53
Valter chegou 3 horas atrasado, abatido, devorando um
pacote de bolachas, roupa amarrotada e cabelo preso feiamente. Barba de
mendigo.
Fiquei irritada na mesma hora. Pedi que não fosse no
evento comigo mal arrumado deste jeito. Teríamos muitos clientes lá e não
achava uma boa ideia. Dessa vez era em Campinas, ele ficou e eu fui sozinha.
DIA 54
Valter não veio trabalhar. Perguntei a minha supervisora
o que houve, se teve justificativa, ela disse que era pessoal. Então minha
suspeita sobre ele estar usando drogas estava cada vez mais forte. Senti pena e
raiva. Um cara fantástico como ele, se condenando.
Pedi saída do trabalho no almoço, avisei que não
voltaria. Liguei para Valter várias vezes, queria uma intervenção. Na 34ª
chamada, Valter atendeu, a voz meio fina estava quase sumida. Disse que estava
a caminho de sua casa. Ele implorou que eu não viesse. Então pedi para ele me
receber no portão pelo menos, porque eu precisava falar.
No portão de uma casa grande e antiga, caindo aos
pedaços, veio Valter de camiseta branca simples, com uma grande mancha escura.
Calças de moletom, chinelos de dedo, cabelo preso. Olhos – verdes – com olheiras
fundas. Mas o que me deixou mais impressionada eram as marcas de mordida no
braço.
“Você ta usando drogas? ”
“Não”
“Você chega atrasado e quase sempre mal arrumado, você
fica muito tempo no banheiro, e muito tempo falando com alguém sobre remédios
no celular, todos os dias. Você precisa de ajuda, pode se abrir comigo. O que
você está usando? ”
“Eu não estou usando drogas, não preciso de ajuda”
“O que são essas marcas de mordida no seu braço? Você
está acabado! O que é essa mancha na sua camiseta? ”
Eu estava alucinada, todos os sinais possíveis de usuário
de drogas estavam ali.
“Porque não quer me receber em sua casa? Deve ter uma
carreira de cocaína em sua mesa né?”
Ele suspirou alto. Olhou bem para meus olhos e eu fiquei
meio constrangida.
“Entre”.
A casa grande tinha uma sala na parte da frente por onde
entrei. Tudo estava apagado, abafado e com cheiro de mofo. Só conseguia
vislumbrar os móveis. Silencio modorrento, entramos num corredor que dava para
um quarto no fim, de onde eu via uma luz fraca de abajur. No quarto, uma cama
de casal no centro, e uma pessoa depositada ali. Um balde exalava um cheiro
acre enjoativo ao lado da cama.
Valter estava a minha frente, se aproximou da cama e
puxou um cobertor que escondia quase totalmente a pessoa na cama.
“Pai, essa é a Patrícia, veio nos visitar”
A pessoa que Valter se referiu como “pai” não se mexeu.
Nem ao menos olhou. Parecia ter tido o sangue sugado e a pele colada junto ao
osso. Esquelético e frágil. Careca, boca semiaberta, não consegui ver muitos
detalhes. Estava surpresa demais. Era esse o segredo então.
O pai soltou um som alto e agonizante.
Num minuto me lembrei de todos os momentos que Valter me
parecia distante, cansado, confuso, preocupado, pensando na morte da bezerra.
Pensei em todos aqueles atrasos, e todas as faltas, da cumplicidade de nossa
supervisora que provavelmente sabia de tudo.
Estava em prantos.
“Meu pai tem um tipo raro de câncer já faz 4 anos. Minha mãe
cuidava dele enquanto eu trabalhava mas faz seis meses que ela faleceu de um
infarto espontâneo. Não tínhamos dinheiro para interna-lo, mal tínhamos
dinheiro para comer e comprar os remédios, então combinei com a vizinha dela
olhar meu pai enquanto eu trabalhava. Mas havia uma série de cuidados que tenho
que prever. Comida, banho, remédios que você nem imagina. Ele não vai aguentar
muito mais, mas ainda é meu pai.”
Eu o abracei. E estava apaixonada por ele. E queria
cuidar dele, dar descanso e carinho.
DIA 56
Assinei meu papel das férias. Fazia 3 anos que não tirava
férias. Era cedo ainda. Fui informada que Valter faltou novamente. No dia em que estive em sua casa, ele disse que acreditava estar perto do
fim.
Levei muita comida para eles, fui recebida por um sorriso
cansado, mas bem satisfeito. Era como se eu sempre tivesse que estar ali.
Fiquei o dia todo, limpando a casa, conversando e rindo com Valter. Era
incrível que mesmo sob aquelas condições, ele ainda podia ser tão
maravilhosamente bem-humorado.
Então lhe contei que estava apaixonada por ele. Estávamos
no quintal, estendendo uns lençóis. Ele riu, não acreditou muito.
“Não estou em condições de ter uma vida própria agora”.
DIA 58
Ontem pela manhã, o pai de Valter finalmente descansou na
eternidade. Soube que era alcoólatra,
violento e mulherengo antes de ficar doente. Valter me contou isso com muito
pesar, com vergonha. Eu o beijei. Consolei, cuidei.
O cansaço haveria de passar, as coisas haveriam de se
ajeitar. O dever dele estava cumprido.
Tudo ia ficar bem agora.
|
Munch - Det syke barn (1896)
|
"Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas."
Rilke