terça-feira, outubro 11, 2016

O Amor nos tempos do câncer

DIA 1
O funcionário novo era muito estranho, o Valter. Ele estava sentando ao meu lado, nossas baias eram do tipo grandes e separadas por uma pilha de pastas apenas. Se ele virasse para trás, conseguiria ver tudo o que eu fazia em meu computador o dia todo. Podia me vigiar.
Eu não gostava dele. Ele parecia ser velho mas ao mesmo tempo, jovem. Ele não falava claramente, sempre sussurrante e fazendo falsetes, usando palavras em desuso. Ceroula, carraspana, chumbrega, fuzarca. Parecia ter engolido em dicionário de 1920. Fiquei incumbida de treiná-lo. Ele faria dupla comigo.  
Em nosso primeiro contato, ele parecia arredio, irritado. Até sorria, mas parecia estar na defensiva. Tinha muita dificuldade em se concentrar. Não era totalmente ignorante sobre o trabalho, embora tivesse vindo de uma outra área diferente. Ensinei algumas coisas básicas pela manhã e voltei para minha mesa achando que ele não havia aprendido nada, e que ficaria perdido o resto do dia.
Havia uma pilha de pastas com documentos que ele deveria analisar e preencher algumas planilhas. Três horas depois de ter lhe passado a tarefa, ainda não havia feito nem um terço. Como era o seu primeiro dia, dei-lhe mais tempo. Fui para uma reunião que durou 1h20. Quando voltei ele havia terminado. “Alguma coisa aconteceu aqui”, pensei.
No almoço, pouca conversa. Parecia longe, disperso.

DIA 4
Valter chegou 20 minutos atrasado. Parecia ter vindo correndo. Disse que ficou preso no transito local. Semblante pesado, parecia não ter dormido. Antes dele chegar lhe deixei outra pilha de documentos para analisar e digitalizar em seguida. Quando chegou, sem que houvesse qualquer explicação, se pôs a fazer o trabalho exatamente como eu teria lhe instruído. Fiquei surpresa. Brinquei “temos um Valter Mercado aqui na empresa gente” e ele riu, aquela risada  chata de criança birrenta, três tons acima da sua voz normal que já era fina. Eu odiava aquilo.

DIA 8
Valter chegou 30 minutos atrasado, como se estivesse correndo, justificou que era o transito e saiu para tomar um café com o celular na mão, ficou 15 minutos fora. Eu não era sua supervisora. Não cabia a mim dar broncas. Mas tanto eu quanto as demais pessoas da equipe olhamos com o olhar de desaprovação, igual quando alguém tomava um copinho de caipirinha antes do almoço no restaurante que frequentávamos e que oferecia antes do bufê. Estava desenvolvendo as tarefas muito bem, mas ainda me passava a imagem de estar perdido, confuso e inseguro.

DIA 11
Valter chegou incríveis 60 minutos atrasado. Não me deu justificativa. Chegou com ar cansado, com poucas palavras. Trabalhou o dia todo quieto. Eu estava irritadíssima, conforme seu treinamento avançava, mais nos consolidávamos como dupla, que era o formato usado naquela empresa. Eu tinha uma dupla que chegava atrasado, estava sempre cansado, não passava segurança, não dava justificativas!

DIA 20
Valter segue chegando atrasado. Reportei a nossa supervisora ontem. Hoje quando ele chegou 1h atrasado, a supervisora o chamou para uma reunião. Ficaram muito tempo lá e eu não sei o que aconteceu. Teremos um evento corporativo daqui cinco dias e eu preciso de uma dupla, não temos tempo hábil para treinar outra pessoa, portanto Valter não pode ser demitido.

DIA 22
Valter chegou apenas 5 minutos atrasado. Mas falou no celular de manhã com uma tal de Deise por uns 40 minutos, dava instruções bem específicas falando baixo naquela voz irritantemente aguda. Ele não havia cortado o cabelo desde que entrou na empresa e agora estava um estilo meio Luiz Caldas. Completamente detestável. Ontem no almoço, até que conversamos. Ele era budista, por isso estava sempre tão conformado. Ele tinha olhos verdes. E tinha uma cicatriz profunda e feia no ombro, resultado de um acidente de carro. O acidente tinha cortado ao meio o futuro que tinha como lutador de jiu-jitsu, uma vez que reduzira os movimentos do ombro. Eu seguia surpresa.

DIA 26
Ontem tivemos o evento que foi em Santos. Valter chegou 15 minutos atrasado, mas deu tudo certo. Na volta, numa van alugada pela empresa, Valter cochilou pesadamente sobre meu ombro. Eu tinha todos os motivos do mundo para esbravejar, me chacoalhar e empurrá-lo para longe, mas deixei ficar.

DIA 30
Valter não veio trabalhar, não deu justificativa. Achei muito curioso que a postura que nossa supervisora tenha com ele seja tão complacente, com qualquer outro funcionário da equipe, ela teria no mínimo dado algumas advertências verbais. Fiquei o dia todo curiosa querendo saber o que raios fez Valter faltar. Comecei a suspeitar de que talvez seus atrasos não fossem relaxos ou transito.

DIA 37
Valter alegou para mim estar fazendo um tratamento e que por isso teria que sair duas horas mais cedo, e que havia combinado com nossa supervisora. Tinha olheiras. Estava sempre com ar confuso, perdido. Eu gostava de conversar com ele. Tínhamos gostos muito parecidos, cultura pop japonesa, gastronomia, política. Nem lembrava mais de odiar a risada infantil, o cabelo de Luiz Caldas e sua baixa estatura, que em algum momento anterior me irritou.
Mas eu queria saber o que realmente estava acontecendo. Pensei que talvez ele tivesse usando drogas.

DIA 42
Valter estava com o rosto completamente inchado. Demorava 30 minutos no banheiro sempre que ia. Eu tinha quase certeza que estava usando drogas. Mas gostava quando puxava algum assunto e ele parecia uma Wikipédia Humana, destrinchando tudo para mim. E ele falava japonês fluentemente.

DIA 47
Valter chegou usando uma camisa abotoada errado, cabelo preso num mini rabo-de-cavalo. Perguntei quando ele iria cortar o cabelo, fez um muxoxo. Estávamos aos poucos ficando íntimos. A barba também estava por fazer, mas achei bonito assim, másculo.
Quando queria algo, chegava igual uma criança sorrateira e dava um puxãozinho no meu cabelo. Eu seguia o chamando de Valter Mercado. No almoço, ele fingia adivinhar o prato do dia. Ele era muito engraçado e estava sempre tranquilo embora cansado. Tínhamos outro evento dali alguns dias.

DIA 53
Valter chegou 3 horas atrasado, abatido, devorando um pacote de bolachas, roupa amarrotada e cabelo preso feiamente. Barba de mendigo.
Fiquei irritada na mesma hora. Pedi que não fosse no evento comigo mal arrumado deste jeito. Teríamos muitos clientes lá e não achava uma boa ideia. Dessa vez era em Campinas, ele ficou e eu fui sozinha.

DIA 54
Valter não veio trabalhar. Perguntei a minha supervisora o que houve, se teve justificativa, ela disse que era pessoal. Então minha suspeita sobre ele estar usando drogas estava cada vez mais forte. Senti pena e raiva. Um cara fantástico como ele, se condenando.
Pedi saída do trabalho no almoço, avisei que não voltaria. Liguei para Valter várias vezes, queria uma intervenção. Na 34ª chamada, Valter atendeu, a voz meio fina estava quase sumida. Disse que estava a caminho de sua casa. Ele implorou que eu não viesse. Então pedi para ele me receber no portão pelo menos, porque eu precisava falar.
No portão de uma casa grande e antiga, caindo aos pedaços, veio Valter de camiseta branca simples, com uma grande mancha escura. Calças de moletom, chinelos de dedo, cabelo preso. Olhos – verdes – com olheiras fundas. Mas o que me deixou mais impressionada eram as marcas de mordida no braço.
“Você ta usando drogas? ”
“Não”
“Você chega atrasado e quase sempre mal arrumado, você fica muito tempo no banheiro, e muito tempo falando com alguém sobre remédios no celular, todos os dias. Você precisa de ajuda, pode se abrir comigo. O que você está usando? ”
“Eu não estou usando drogas, não preciso de ajuda”
“O que são essas marcas de mordida no seu braço? Você está acabado! O que é essa mancha na sua camiseta? ”
Eu estava alucinada, todos os sinais possíveis de usuário de drogas estavam ali.
“Porque não quer me receber em sua casa? Deve ter uma carreira de cocaína em sua mesa né?”
Ele suspirou alto. Olhou bem para meus olhos e eu fiquei meio constrangida.
“Entre”.
A casa grande tinha uma sala na parte da frente por onde entrei. Tudo estava apagado, abafado e com cheiro de mofo. Só conseguia vislumbrar os móveis. Silencio modorrento, entramos num corredor que dava para um quarto no fim, de onde eu via uma luz fraca de abajur. No quarto, uma cama de casal no centro, e uma pessoa depositada ali. Um balde exalava um cheiro acre enjoativo ao lado da cama.
Valter estava a minha frente, se aproximou da cama e puxou um cobertor que escondia quase totalmente a pessoa na cama.
“Pai, essa é a Patrícia, veio nos visitar”
A pessoa que Valter se referiu como “pai” não se mexeu. Nem ao menos olhou. Parecia ter tido o sangue sugado e a pele colada junto ao osso. Esquelético e frágil. Careca, boca semiaberta, não consegui ver muitos detalhes. Estava surpresa demais. Era esse o segredo então.
O pai soltou um som alto e agonizante.
Num minuto me lembrei de todos os momentos que Valter me parecia distante, cansado, confuso, preocupado, pensando na morte da bezerra. Pensei em todos aqueles atrasos, e todas as faltas, da cumplicidade de nossa supervisora que provavelmente sabia de tudo.
Estava em prantos.
“Meu pai tem um tipo raro de câncer já faz 4 anos. Minha mãe cuidava dele enquanto eu trabalhava mas faz seis meses que ela faleceu de um infarto espontâneo. Não tínhamos dinheiro para interna-lo, mal tínhamos dinheiro para comer e comprar os remédios, então combinei com a vizinha dela olhar meu pai enquanto eu trabalhava. Mas havia uma série de cuidados que tenho que prever. Comida, banho, remédios que você nem imagina. Ele não vai aguentar muito mais, mas ainda é meu pai.”
Eu o abracei. E estava apaixonada por ele. E queria cuidar dele, dar descanso e carinho.

DIA 56
Assinei meu papel das férias. Fazia 3 anos que não tirava férias. Era cedo ainda. Fui informada que Valter faltou novamente. No dia em que estive em sua casa, ele disse que acreditava estar perto do fim.
Levei muita comida para eles, fui recebida por um sorriso cansado, mas bem satisfeito. Era como se eu sempre tivesse que estar ali. Fiquei o dia todo, limpando a casa, conversando e rindo com Valter. Era incrível que mesmo sob aquelas condições, ele ainda podia ser tão maravilhosamente bem-humorado.
Então lhe contei que estava apaixonada por ele. Estávamos no quintal, estendendo uns lençóis. Ele riu, não acreditou muito.
“Não estou em condições de ter uma vida própria agora”.

DIA 58
Ontem pela manhã, o pai de Valter finalmente descansou na eternidade.  Soube que era alcoólatra, violento e mulherengo antes de ficar doente. Valter me contou isso com muito pesar, com vergonha. Eu o beijei. Consolei, cuidei.
O cansaço haveria de passar, as coisas haveriam de se ajeitar. O dever dele estava cumprido.
Tudo ia ficar bem agora.

Munch - Det syke barn (1896)





"Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas." 

Rilke

















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