sexta-feira, outubro 07, 2016

ipê-branco

Quando João tinha 14 anos, foi trocado pela primeira namoradinha do Ginásio por um babaca que jogava futebol nas categorias de base da Portuguesa. Na mesma semana, sua mãe pediu divórcio de seu pai, o deixando para morar com ele, e sua irmã mais velha anunciou que estava de mudança para a casa do noivo, praticamente casados.
João viu, de repente, todas as mulheres de sua vida saindo de fininho, como se tivessem fugindo. Nesta semana misógina de sua vida, o único conforto foi devorar todas as músicas do Ira! que seu pai guardava LPs e CDs em baús, junto com uma penca de livros da biblioteca da família.
Ele não se envergonhava de chorar, enquanto lia Alexandre Dumas, Milan Kundera ou Lygia Fagundes Telles, pelo contrário, se fortalecia nisso.
Então quando fez 15 anos, na hora de cortar o bolo caprichosamente feito pela sua mãe numa tentativa falha de parecer que se importava com João, ele desejou nunca mais sofrer pela perda de uma mulher em sua vida. Ou pelo menos não se importar mais. Desejou ser sozinho, só ele e seus livros.
Com um sopro forte, a chama da vela se apagou em cima do bolo, enquanto duravam aqueles cinco segundos constrangedores entre o fim do “Parabéns” e a escuridão.

Havia um canto da rua onde ele morava quando garoto, que de jeito nenhum alguém poderia ir lá, porque era escuro e contavam histórias desagradáveis sobre aquele lugar. Pois bem, João chegou a conclusão de que sua vida amorosa, depois daquele aniversário de 15 anos, virou um lugar escuro e cheio de histórias desagradáveis, tal qual o canto da rua onde morou.

Aos 19 anos, seu pai faleceu. Ficou se perguntando se tal feito era em consequência de seu pedido de viver sozinho, uma vez que o velho era sua única companhia. A perda de seu velho significava uma vida inteira de saudades e arrependimento pelas coisas que não disse, que não fez. Era como uma penitência por não ter dado valor quando o tinha.
Acolheu toda a coleção de livros de seu pai e jurou aumentá-la. Foi trabalhar numa livraria na Avenida Ipiranga, perto de onde morava na Luz. Absorto nas mil coisas que planejava para si, não reparava em ninguém ao seu redor, vizinhos e porteiros sempre passavam em brancas nuvens, havia um número restrito de amigos nessa fase de sua vida, seu melhor amigo Hélio do primário e outros caras da escola.

Até que conheceu Ana, nova funcionária da livraria.
As mulheres eram para ele até então como se fossem um rolo compressor cheio de espinhos que passava por cima de seu coração. Mas só do seu coração. De todas as outras pessoas no mundo, não, as mulheres eram acalento. Eram um grande ipê branco que havia no jardim de sua escola, quando floria, lhe lembrava sua mãe. Mas não floria sempre.

A garota Ana tinha um ponto de vista bem maduro da vida pós-adolescência. Ela achava que não bastava se apaixonar. As pessoas deviam ter admiração e respeito pelo companheiro. Deviam ser fãs um do outro. João se apaixonou por ela, garota esperta, cheia de experiências para contar, algumas tatuagens, franjinha anos 70, roupas ora descoladas, ora vintages, batons vermelhos e na testa a bandeira da igualdade de gênero estampada. Ana jamais seria aquelas garotas de dramas baratos. Ana era forte. Linda, divertida.
João a queria. Queria que ela entrasse em sua vida, que conhecesse seu charmoso apartamento, queria que as cervejas depois do expediente fossem para sempre, queria cozinhar com ela e queria acordar com o sorriso dela ao lado. Mas claro que tinha uma parte de seu interior que sempre que o via se aproximando dela, corria aos ouvidos dizer "corra, é cilada, ela vai fazer você gostar dela e depois vai sumir" e outra parte que dizia "se você não for lá, vai envelhecer sozinho jogando dama no Sesc Pompeia, é isso que você quer?" .

Um dia a viu chorando na porta da livraria e então, como aquilo lhe incomodou, resolveu falar. Começou já se declarando e então Ana disse que não podia, não queria, ainda aos prantos. Era a primeira vez em um ano desde que conhecera que a via chorar. Ela disse que havia acabado de descobrir que estava grávida.

Ana sumiu. E João voltou ao seu casulo de livros que o mantinha em ponto morto.
Entrou numa banda, tocava bateria. Deixou barba e cabelos crescerem. Abriu um sebo com os montes de livro que acumulara ao longo da vida. Fez muitos, muitos amigos. Criou um estilo de vida descoladinho, buscava felicidade nas coisas simples. Era fotógrafo nas horas vagas, falava mandarim e só andava de metrô ou bicicleta. Curtia bares que tocavam música ao vivo, e conhecia todos do centro. São Paulo's lifestyle full time.

É claro que vieram outras garotas, algumas duradouras, outras passageiras. João procurava um pedacinho de Ana em cada uma delas. Um sorriso de dentes brancos, perfeitos, retos, sacanas. Uma pinta em forma de estrela que ela tinha no ombro. Os joelhos tortos, o som da risada. O estilo, os cabelos. Todas as garotas tinham algo que Ana tinha. Era uma forma de nunca a esquecer, porque talvez ela era a unica que o fazia crer que podia reverter o pedido que fez aos quinze anos e não perder mais ninguém que amava.

Todas as sextas feiras a noite, era regularmente o dia de ensaio de sua banda, que no sábado sempre se apresentava num bar na periferia. Ensaiavam sempre na casa de Hélio, o vocalista, que ficava na Aclimação. Hélio era seu amigo desde que a garota do primário o trocou pelo jogador da Portuguesa. Foi Hélio que lhe apresentou o primeiro cigarro, era Hélio que o aguentava todas as vezes que falava sobre sua mãe e irmã com ressentimento, que falava de Ana. Hélio era o cara. Mas ao longo dos anos, Hélio conheceu a Ana dele, uma professora chamada Rose, casaram e tiveram filhos, e além disso, Hélio envelheceu a ponto de ficar careca e meio barrigudo. Mas ainda era seu amigo de sempre, um ator engraçado que ganhava a vida com peças bem humoradas e alguns poucos programas de TV em canais pagos. Fazia algum tempo que o casamento de Hélio e Rose não estava indo bem, e seu amigo não conseguia se expressar sobre o que estava acontecendo exatamente. Era só uma apatia, uma indiferença. João sabia disso por cima, eram homens e amigos, não precisavam de protocolos para se abrirem um com o outro. Até que uma sexta feira antes do ensaio, Hélio informa a todos que não poderia fazer o ensaio em sua casa pois estava se separando de Rose.
Dados os devidos consolos entre os homens, fizeram uma noitada de bebidas e conversa para animar Hélio. E então, quando já ia tarde e todos já estavam bêbados falando alto, ouvindo Led Zeppelin e atirando garrafas pela janela, a campainha tocou. João havia alertado para o perigo de se fazer barulho em excesso. Abriu a porta desconfiado, pronto para dar uma boa resposta trépida a quem quer que fosse seu vizinho reclamão.

E então era Ana.
Um pouco mais velha, afinal, ambos tinham 41 anos agora. Mas era ela mesma, o sorriso branco, todo certinho, os joelhos tortos, a pinta em forma de estrela.
Ela arregalou os olhos, ele mal conseguia piscar. Ana virou as costas rapidamente e foi para seu apartamento, do lado oposto. João ainda bestificado, a seguiu, mas a porta bateu em sua cara grosseiramente.
Os rapazes, percebendo o clima que se seguiu, foram embora. Em seu apartamento, João dormira com a imensa vontade de bater no apartamento 508 de Ana.

Mas o que dizer 22 anos depois? Não conseguia pensar. Não conseguia acreditar que a primeira coisa que seu cérebro sugeria dizer pudesse ser real.
Como nunca tinha encontrado Ana no prédio antes? Ela estaria casada?
João percebeu que esses anos todos, moldou sua vida de forma que se um dia reencontrasse Ana, ela coubesse ali. E agora ela estava ali e já tinha uma vida.
Precisava fumar. Sair, tomar um café na padaria. Queria falar com ela, era sua chance, mas ao mesmo tempo sentia um medo danado.
Foi até o 508, mas não conseguiu bater na porta.
Desceu as escadas frustrado, e notou um degrau estragado. Anotou mentalmente que iria subir de elevador.
Então, como se o destino tivesse cansado da novela da vida privada de João, ele se viu no mesmo elevador que Ana. Ela mal respirava ao lado dele, e ele não parava de fita-la. E então o elevador deu uma bela chacoalhada e parou. Estavam presos.
- Eu não acredito que o elevador parou.
- E eu não acredito que te encontrei. Você se lembra de mim?
- ... João.
Ficaram se olhando alguns segundos longos.
- Você sumiu Ana. Eu sempre quis encontrar você de novo.
- Eu tive que sumir. Tive alguns problemas de família.
- Você disse que estava grávida.
- Pois é, eu acabei não tendo o bebê.
Ana abaixou o olhar certamente encabulada. Ambos estavam absortos em o que dizer, Ana parecia trêmula. Quando retomaram a conversa, falaram ao mesmo tempo, praticamente se sobrepondo:
- Eu sei que fui muito babaca do jeito que te falei as coisas que sentia sobre você, mas eu precisava falar porque você era a única pessoa pela qual eu nutria sentimentos, e você me fez fazer planos que eu jamais pensei ser capaz de fazer...
- Eu tive que sumir, mas eu nunca deixei de pensar em você, fui uma idiota em ter deixado um cara como você para trás, quis voltar, quis te achar mas agora eu tenho você...

João pensou em todos os momentos que quis ter Ana por perto, e agora ela estava ali. Para ouvir suas músicas exageradas, para cozinharem juntos, para fotografarem, para irem em shows. Para terem tatuagens. Para não fazerem nada. Para fazerem as cervejas depois do expediente serem eternas, junto com os sorrisos e a companhia um do outro.
Olhava para o semblante de Ana na sua varanda algum tempo depois, um grande calor invadia sua alma. O canto escuro de sua vida amorosa passara por uma reforma e parecia ser agora um grande ipê branco florido para sempre.



Tabebuia roseo-alba



"Árvore da vida
Árvore querida
Perdão pelo coração
Que eu desenhei em você
Com o nome do meu amor" 

Arnaldo Antunes - As Árvores

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