quarta-feira, julho 27, 2016

A fuga do notívago

O cheiro fétido da rua com esgoto vazando enchia o nariz, mas depois de 15 minutos passava a ser “acostumável”.

Tinha uma vontade imensa, insubstituível mas não conseguia satisfazê-la. Eram três e meia da madrugada e ele estava no meio da rua. Andando em círculos, meio sem rumo. Insone.

Um grupo grande de mendigos dormia na praça a sua frente. Alguns poucos travestis faziam ponto do seus serviços oferecidos também na praça. A frente, revelado por árvores, aparecia o imponente prédio da Secretaria de Educação de São Paulo, com sua coloração em tom de amarelo parecendo feita de tijolos de ouro.

Fazia 21 graus, era Março de 2012.

Aurélio sentara num ponto de ônibus, tentava se concentrar no que queria estar fazendo naquele momento.

Claro, tinha muita coisa que podia estar fazendo. Mas ele queria estar com sua filha.

Apagou o quinto cigarro dessa noite, já fazia 3 horas que estava perambulando pela República. Já era a oitava noite não consecutiva que fazia isso, estava realmente com muita saudade de sua filha.

Ela tinha 4 anos, estava morando na Alemanha com a mãe dela. Nunca imaginou que o fruto de uma noite inconsequente fosse gerar um amor tão grande. Ela tinha a diastema igual a sua e covinhas como a mãe.

Fechou os olhos, viu ela brincando com uma penca de brinquedos que Aurélio guardava em sua casa para quando ela voltasse ao Brasil.

Um homem estava sentado na extremidade do longo ponto de ônibus que escolheu, mas parecia enrolado num cobertor e adormecido. Permaneceu de olhos fechados no ponto de ônibus, com as mãos no bolso e em pé.

Sentiu um tipo de paralisação do seu corpo, por um milésimo de segundo.

Algo havia mudado. Ouviu um zunido alto de vento. Abriu os olhos e estava num quarto, um grande pôster do Gummy Bear o saudou numa parede do lado esquerdo. Uma cama tipo dossel estava levemente iluminada no centro do quarto.

Era sua filha, ressonando, dormindo gostosamente em algum lugar da Alemanha. Sorrindo, acariciou sua bochecha.

Não entendia o que tinha acontecido mas ele estava realmente no quarto dela. Colocou a mão em seu próprio rosto, tocou uma espinha na testa e sentiu uma leve pontada de dor, o que provava que era real aquilo.

Abraçou sua menina, que acordou assustada no mesmo minuto resmungando “papai!”

Quando a largou, durante uma piscada, voltou a estar no ponto de ônibus da República.

Não entendia nada do que tinha acontecido. Mas sabia que era real, a imagem de sua menina ainda estava gravada na retina.



"Eu sei que quando anoitece
Nos teus sonhos também estremece
A vontade de fugir, então siga por ali
Vire aquela esquina e vamos partir"

terça-feira, julho 26, 2016

Paisagem Idiótica

Estava a olhar para uma paisagem que eu chamo intimamente de Paisagem Idiótica.

Lembrei de alguém que me contou que havia um lugar do mundo que as pessoas podiam escolher morrer. Não era eutanásia, nem suicídio assistido. Era assassinato mesmo, as pessoas que queriam morrer iam vendadas para um campo entre montanhas onde eram acertadas por um tiro certeiro. Era um método clandestino, as autoridades faziam vista grossa e tudo aquilo era um tipo de serviço social.

Quando me contaram isso, pensei na mesma hora na agonia que deve ser ir para um lugar esperar a morte.

Seria mais agonizante do que a tal paisagem?

Um mar de vidros e ar condicionados grudados na janela, com um pequeno recorte azul do céu que passava despercebido, enquanto a gente acha que viver é acordar e vir pro trabalho e ela passa na nossa cara todo dia.

Recentemente uma propaganda me chamou a atenção, ela falava da natureza implícita em nossas vidas sem percebermos, e como estávamos desperdiçando o espetáculo todo dia. O vídeo do comercial dizia algo como “embaixo do prédio, terra”. Os publicitários envolvidos nessa propaganda tinham noção de estar perdendo toda essa natureza hipervalorizada ao ficarem em escritórios criando algo voltado para alimentar o consumismo?

Queimei meus dedos na ponta de um cigarro, era o meu momento de descanso chegando ao fim.

Saí da janela do escritório, abandonei a paisagem.

De volta a mesa, problemas que eu não podia resolver. E nem queria resolver. Não eram meus. Porém, me garantiam salário no fim do mês.

Era como se depositassem um saco de 50 kg em cima dos meus ombros e me dissessem o tempo todo “não se mexa, você aceitou não se mexer quando topou trabalhar aqui”.

E todo dia, no fim do expediente, eu saía do trabalho com uma sensação mais leve de deixar o peso la dentro do escritório, mas ainda assim, dolorido por tê-lo aguentado sobre os ombros o dia todo. Era uma sensação feliz, o fim do expediente, mas era também meio triste. Era como se eu soubesse que não dava tempo de fazer muitas coisas até ter que voltar pro escritório no dia seguinte. E por achar que não dava tempo de fazer muitas coisas, acabava não fazendo nada.

Eu era inconformado com a Paisagem Idiótica.

Era a cobertura comercial de onde eu trabalhava, na Grande SP. Era uma vista desoladora de pessoas enjauladas, suponha que você visse um dia bonito numa imagem, e nessa imagem tivessem vários animais fofos e meigos em jaulas e gaiolas? Era essa minha sensação. “Mas Aurélio, e se os animais quiseram estar nas jaulas e gaiolas por terem comida garantida?”

Aí eu concluo de que é ainda mais triste, a Paisagem.

No metrô, silencio. Cada um com seu celular.

Quando era menino, eu achava que ser adulto era conversar com todo mundo, conhecer todo mundo, poder falar o que quiser com quem quiser. Porque eu sempre ouvia “não fale com estranhos” e achava que isso era só porque eu era criança. Ninguém nunca diz “não fale com estranhos” para adultos. Agora eu entendo o porquê.

O estranho é você.

Todo mundo se torna estranho.

Queria muito que fosse como eu achava que seria. Achava que ser adulto era legal, e de alguma forma, estava intimamente ligado a natureza, porque não conseguia viabilizar uma cena que não tivesse uma arvore, um ceu, um pedaço de terra.

Mas a gente passa de trem por algumas arvores e as vê gritando “pelo amor de deus, me dê atenção, eu sou a natureza” e acha normal encontrar tudo cheio de lixo.

No dia seguinte, de volta a paisagem onde eu sempre morro e renasço pronto pra morrer no próximo dia com meus 50 kg de problemas dos outros, eu cheguei à conclusão de que estamos sempre no limiar da morte. Como se todo dia pudéssemos ir pro lugar onde tomaríamos o tiro certeiro e antes do derradeiro fim, desistíssemos. Nós, os estranhos, alimentamos uma esperança igualmente estranha.

Como se soubéssemos que não tem jeito, que nada vai mudar nunca. Minha geração não conhece outra verdade quem não seja essa de trabalhar. Mas ficamos planejando quando um dia isso pode acabar.

Essa noite não consegui dormir. Fiquei variando de madrugada, sonhei que uma onda gigantesca açoitava a paisagem idiótica até destruí-la completamente, seus ar-condicionados despencando, as pessoas nas jaulas caindo fatalmente e eu observando tudo da janela do meu escritório, com um cigarro nos dedos.

Talvez essa fosse minha estranha esperança.


"Não tivemos Grande Guerra, não tivemos Grande Depressão. Nossa grande guerra é a guerra espiritual, nossa grande depressão é a nossa vida."