terça-feira, julho 26, 2016

Paisagem Idiótica

Estava a olhar para uma paisagem que eu chamo intimamente de Paisagem Idiótica.

Lembrei de alguém que me contou que havia um lugar do mundo que as pessoas podiam escolher morrer. Não era eutanásia, nem suicídio assistido. Era assassinato mesmo, as pessoas que queriam morrer iam vendadas para um campo entre montanhas onde eram acertadas por um tiro certeiro. Era um método clandestino, as autoridades faziam vista grossa e tudo aquilo era um tipo de serviço social.

Quando me contaram isso, pensei na mesma hora na agonia que deve ser ir para um lugar esperar a morte.

Seria mais agonizante do que a tal paisagem?

Um mar de vidros e ar condicionados grudados na janela, com um pequeno recorte azul do céu que passava despercebido, enquanto a gente acha que viver é acordar e vir pro trabalho e ela passa na nossa cara todo dia.

Recentemente uma propaganda me chamou a atenção, ela falava da natureza implícita em nossas vidas sem percebermos, e como estávamos desperdiçando o espetáculo todo dia. O vídeo do comercial dizia algo como “embaixo do prédio, terra”. Os publicitários envolvidos nessa propaganda tinham noção de estar perdendo toda essa natureza hipervalorizada ao ficarem em escritórios criando algo voltado para alimentar o consumismo?

Queimei meus dedos na ponta de um cigarro, era o meu momento de descanso chegando ao fim.

Saí da janela do escritório, abandonei a paisagem.

De volta a mesa, problemas que eu não podia resolver. E nem queria resolver. Não eram meus. Porém, me garantiam salário no fim do mês.

Era como se depositassem um saco de 50 kg em cima dos meus ombros e me dissessem o tempo todo “não se mexa, você aceitou não se mexer quando topou trabalhar aqui”.

E todo dia, no fim do expediente, eu saía do trabalho com uma sensação mais leve de deixar o peso la dentro do escritório, mas ainda assim, dolorido por tê-lo aguentado sobre os ombros o dia todo. Era uma sensação feliz, o fim do expediente, mas era também meio triste. Era como se eu soubesse que não dava tempo de fazer muitas coisas até ter que voltar pro escritório no dia seguinte. E por achar que não dava tempo de fazer muitas coisas, acabava não fazendo nada.

Eu era inconformado com a Paisagem Idiótica.

Era a cobertura comercial de onde eu trabalhava, na Grande SP. Era uma vista desoladora de pessoas enjauladas, suponha que você visse um dia bonito numa imagem, e nessa imagem tivessem vários animais fofos e meigos em jaulas e gaiolas? Era essa minha sensação. “Mas Aurélio, e se os animais quiseram estar nas jaulas e gaiolas por terem comida garantida?”

Aí eu concluo de que é ainda mais triste, a Paisagem.

No metrô, silencio. Cada um com seu celular.

Quando era menino, eu achava que ser adulto era conversar com todo mundo, conhecer todo mundo, poder falar o que quiser com quem quiser. Porque eu sempre ouvia “não fale com estranhos” e achava que isso era só porque eu era criança. Ninguém nunca diz “não fale com estranhos” para adultos. Agora eu entendo o porquê.

O estranho é você.

Todo mundo se torna estranho.

Queria muito que fosse como eu achava que seria. Achava que ser adulto era legal, e de alguma forma, estava intimamente ligado a natureza, porque não conseguia viabilizar uma cena que não tivesse uma arvore, um ceu, um pedaço de terra.

Mas a gente passa de trem por algumas arvores e as vê gritando “pelo amor de deus, me dê atenção, eu sou a natureza” e acha normal encontrar tudo cheio de lixo.

No dia seguinte, de volta a paisagem onde eu sempre morro e renasço pronto pra morrer no próximo dia com meus 50 kg de problemas dos outros, eu cheguei à conclusão de que estamos sempre no limiar da morte. Como se todo dia pudéssemos ir pro lugar onde tomaríamos o tiro certeiro e antes do derradeiro fim, desistíssemos. Nós, os estranhos, alimentamos uma esperança igualmente estranha.

Como se soubéssemos que não tem jeito, que nada vai mudar nunca. Minha geração não conhece outra verdade quem não seja essa de trabalhar. Mas ficamos planejando quando um dia isso pode acabar.

Essa noite não consegui dormir. Fiquei variando de madrugada, sonhei que uma onda gigantesca açoitava a paisagem idiótica até destruí-la completamente, seus ar-condicionados despencando, as pessoas nas jaulas caindo fatalmente e eu observando tudo da janela do meu escritório, com um cigarro nos dedos.

Talvez essa fosse minha estranha esperança.


"Não tivemos Grande Guerra, não tivemos Grande Depressão. Nossa grande guerra é a guerra espiritual, nossa grande depressão é a nossa vida."


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