sábado, agosto 30, 2014

Veja bem, querida

Não posso negar que foi um dia diferente, como imaginamos que seria. 
Por muitos meses, entreguei panfletos de condomínios classe média que eu nunca morarei. Guardava metade do salário diário para realizar seu sonho. 
A outra metade, você sabe, era o meu biotônico fontoura. 
Então, meses antes, comecei a analisar as possibilidades de transporte. 
Eu queria um táxi, mas queria que não nos faltasse nada. 
Queria roupas novas, bonitas e limpas para variar. Eu queria enfeitá-la, como a princesa que você é. 
Queria um mar dourado de moedas de ouro pra te presentear. 
Não sei o valor que se paga por um anjo. 

Então, no melhor estilo new rich, te dei um bonito vestido. Seu sonho, que aquela altura já era meu também, estava sendo desenhado com um tijolo na calçada que dormíamos todos os podres dias da nossa sobrevivência. 

Mas aí, chegou o inverno e os casacos de pele de chinchila da rua dos outros não quiseram nos vestir. 
O negro nos vestiu, nos circundou por meses, eu afundado na maldita cachaça, e você vendendo o que tinha de mais precioso: o sorriso de sua mãe. 

A velha calçada então se iluminou com o bom sol chuvoso de Setembro, e as coisas melhoraram. 
Eu queria que tudo nos desse certo até Novembro, então teríamos muito trabalho pela frente. 

Eu era tudo. Manobrista, marronzinho, carregador de caminhão, panfleteiro, homem-placa e seu pai. Você ainda era puta e andava trabalhando demais. 

Então, dia 31 de outubro de manhã, eu contei nosso dinheiro guardado: perfeitamente contato para realizar nosso sonho. 

E no mesmo 31 de outubro, eu vi sua vida fugir dos lábios em uma pneumonia mal-curada. 

O mundo não sentirá falta de nós querida. 
Eu realizei nosso sonho, vim visitar o mar de que você tanto imaginava. Sinto sua falta, o cheiro de sal lembra o cheiro da sua morte. A AIDS estava matando você, e eu nunca percebi. Talvez este sonho de ver o mar estivesse nos deixando loucos. 

Frente ao mar de ouro que te prometi um dia debaixo de um toldo velho onde vezes dormíamos, eu repito como se estivesse aqui: veja bem querida. 

sexta-feira, agosto 15, 2014

desde sei lá quando

Você se lembra daquele rapaz magrinho? Estava sempre escondido, não andava com ninguém só falava o necessário. 

E aquela menina que passava os intervalos da escola escondida atrás da quadra, lendo, você se lembra? 

Tinha também aquele gordinho que ficava procurando alguém para jogar xadrez com ele na aula de Educação Física, já que era excluído do futebol. 

Antes disso, ainda tinha também aquela que tinha piolho e as roupas eram velhas e nem sempre limpas. Era negra, a mulecada olhava estranho, não gostava muito. 

E tinha eu. E tinha você. 

O rapaz magrinho, que lá no Ensino Fundamental era tão excluído que nunca nem nos preocupamos em saber o nome, hoje tem carro, mora sozinho, está terminando a faculdade. Está namorando uma garota linda, magra e alta, e todo fim de semana ele vai a vários bares com um grupo de amigos no centro da cidade. 

Aquela menina gordinha que ficava lendo sem falar com ninguém, eu a vi outro dia. Ela hoje está estudando direito na França. Casou com um francês e eu sempre vejo suas fotos muito apaixonada, feliz e rodeada de amigos. 

O gordinho do xadrez, este foi o melhor de todos. Emagreceu, ficou alto e virou modelo. Pra se ter uma ideia, eu nem consigo te dizer onde é que ele está agora, mas da última vez que vi, estava parado num farol com um carrão e tinha muitas mulheres dentro. 

A piolhenta? A piolhenta cresceu, aprendeu a lavar roupa, alisou seu cabelo, arranjou emprego, fez faculdade e hoje é CEO numa grande empresa. 

E eu? 
E você? 

Estamos a margem. Querendo ser tão aparentemente bons quanto os nossos excluídos. Estamos frustrados, na nossa época que era só uma brincadeira, hoje é uma infração. E o que inocentemente era uma predestinação, se tornou uma mentira.