terça-feira, outubro 11, 2016

O Amor nos tempos do câncer

DIA 1
O funcionário novo era muito estranho, o Valter. Ele estava sentando ao meu lado, nossas baias eram do tipo grandes e separadas por uma pilha de pastas apenas. Se ele virasse para trás, conseguiria ver tudo o que eu fazia em meu computador o dia todo. Podia me vigiar.
Eu não gostava dele. Ele parecia ser velho mas ao mesmo tempo, jovem. Ele não falava claramente, sempre sussurrante e fazendo falsetes, usando palavras em desuso. Ceroula, carraspana, chumbrega, fuzarca. Parecia ter engolido em dicionário de 1920. Fiquei incumbida de treiná-lo. Ele faria dupla comigo.  
Em nosso primeiro contato, ele parecia arredio, irritado. Até sorria, mas parecia estar na defensiva. Tinha muita dificuldade em se concentrar. Não era totalmente ignorante sobre o trabalho, embora tivesse vindo de uma outra área diferente. Ensinei algumas coisas básicas pela manhã e voltei para minha mesa achando que ele não havia aprendido nada, e que ficaria perdido o resto do dia.
Havia uma pilha de pastas com documentos que ele deveria analisar e preencher algumas planilhas. Três horas depois de ter lhe passado a tarefa, ainda não havia feito nem um terço. Como era o seu primeiro dia, dei-lhe mais tempo. Fui para uma reunião que durou 1h20. Quando voltei ele havia terminado. “Alguma coisa aconteceu aqui”, pensei.
No almoço, pouca conversa. Parecia longe, disperso.

DIA 4
Valter chegou 20 minutos atrasado. Parecia ter vindo correndo. Disse que ficou preso no transito local. Semblante pesado, parecia não ter dormido. Antes dele chegar lhe deixei outra pilha de documentos para analisar e digitalizar em seguida. Quando chegou, sem que houvesse qualquer explicação, se pôs a fazer o trabalho exatamente como eu teria lhe instruído. Fiquei surpresa. Brinquei “temos um Valter Mercado aqui na empresa gente” e ele riu, aquela risada  chata de criança birrenta, três tons acima da sua voz normal que já era fina. Eu odiava aquilo.

DIA 8
Valter chegou 30 minutos atrasado, como se estivesse correndo, justificou que era o transito e saiu para tomar um café com o celular na mão, ficou 15 minutos fora. Eu não era sua supervisora. Não cabia a mim dar broncas. Mas tanto eu quanto as demais pessoas da equipe olhamos com o olhar de desaprovação, igual quando alguém tomava um copinho de caipirinha antes do almoço no restaurante que frequentávamos e que oferecia antes do bufê. Estava desenvolvendo as tarefas muito bem, mas ainda me passava a imagem de estar perdido, confuso e inseguro.

DIA 11
Valter chegou incríveis 60 minutos atrasado. Não me deu justificativa. Chegou com ar cansado, com poucas palavras. Trabalhou o dia todo quieto. Eu estava irritadíssima, conforme seu treinamento avançava, mais nos consolidávamos como dupla, que era o formato usado naquela empresa. Eu tinha uma dupla que chegava atrasado, estava sempre cansado, não passava segurança, não dava justificativas!

DIA 20
Valter segue chegando atrasado. Reportei a nossa supervisora ontem. Hoje quando ele chegou 1h atrasado, a supervisora o chamou para uma reunião. Ficaram muito tempo lá e eu não sei o que aconteceu. Teremos um evento corporativo daqui cinco dias e eu preciso de uma dupla, não temos tempo hábil para treinar outra pessoa, portanto Valter não pode ser demitido.

DIA 22
Valter chegou apenas 5 minutos atrasado. Mas falou no celular de manhã com uma tal de Deise por uns 40 minutos, dava instruções bem específicas falando baixo naquela voz irritantemente aguda. Ele não havia cortado o cabelo desde que entrou na empresa e agora estava um estilo meio Luiz Caldas. Completamente detestável. Ontem no almoço, até que conversamos. Ele era budista, por isso estava sempre tão conformado. Ele tinha olhos verdes. E tinha uma cicatriz profunda e feia no ombro, resultado de um acidente de carro. O acidente tinha cortado ao meio o futuro que tinha como lutador de jiu-jitsu, uma vez que reduzira os movimentos do ombro. Eu seguia surpresa.

DIA 26
Ontem tivemos o evento que foi em Santos. Valter chegou 15 minutos atrasado, mas deu tudo certo. Na volta, numa van alugada pela empresa, Valter cochilou pesadamente sobre meu ombro. Eu tinha todos os motivos do mundo para esbravejar, me chacoalhar e empurrá-lo para longe, mas deixei ficar.

DIA 30
Valter não veio trabalhar, não deu justificativa. Achei muito curioso que a postura que nossa supervisora tenha com ele seja tão complacente, com qualquer outro funcionário da equipe, ela teria no mínimo dado algumas advertências verbais. Fiquei o dia todo curiosa querendo saber o que raios fez Valter faltar. Comecei a suspeitar de que talvez seus atrasos não fossem relaxos ou transito.

DIA 37
Valter alegou para mim estar fazendo um tratamento e que por isso teria que sair duas horas mais cedo, e que havia combinado com nossa supervisora. Tinha olheiras. Estava sempre com ar confuso, perdido. Eu gostava de conversar com ele. Tínhamos gostos muito parecidos, cultura pop japonesa, gastronomia, política. Nem lembrava mais de odiar a risada infantil, o cabelo de Luiz Caldas e sua baixa estatura, que em algum momento anterior me irritou.
Mas eu queria saber o que realmente estava acontecendo. Pensei que talvez ele tivesse usando drogas.

DIA 42
Valter estava com o rosto completamente inchado. Demorava 30 minutos no banheiro sempre que ia. Eu tinha quase certeza que estava usando drogas. Mas gostava quando puxava algum assunto e ele parecia uma Wikipédia Humana, destrinchando tudo para mim. E ele falava japonês fluentemente.

DIA 47
Valter chegou usando uma camisa abotoada errado, cabelo preso num mini rabo-de-cavalo. Perguntei quando ele iria cortar o cabelo, fez um muxoxo. Estávamos aos poucos ficando íntimos. A barba também estava por fazer, mas achei bonito assim, másculo.
Quando queria algo, chegava igual uma criança sorrateira e dava um puxãozinho no meu cabelo. Eu seguia o chamando de Valter Mercado. No almoço, ele fingia adivinhar o prato do dia. Ele era muito engraçado e estava sempre tranquilo embora cansado. Tínhamos outro evento dali alguns dias.

DIA 53
Valter chegou 3 horas atrasado, abatido, devorando um pacote de bolachas, roupa amarrotada e cabelo preso feiamente. Barba de mendigo.
Fiquei irritada na mesma hora. Pedi que não fosse no evento comigo mal arrumado deste jeito. Teríamos muitos clientes lá e não achava uma boa ideia. Dessa vez era em Campinas, ele ficou e eu fui sozinha.

DIA 54
Valter não veio trabalhar. Perguntei a minha supervisora o que houve, se teve justificativa, ela disse que era pessoal. Então minha suspeita sobre ele estar usando drogas estava cada vez mais forte. Senti pena e raiva. Um cara fantástico como ele, se condenando.
Pedi saída do trabalho no almoço, avisei que não voltaria. Liguei para Valter várias vezes, queria uma intervenção. Na 34ª chamada, Valter atendeu, a voz meio fina estava quase sumida. Disse que estava a caminho de sua casa. Ele implorou que eu não viesse. Então pedi para ele me receber no portão pelo menos, porque eu precisava falar.
No portão de uma casa grande e antiga, caindo aos pedaços, veio Valter de camiseta branca simples, com uma grande mancha escura. Calças de moletom, chinelos de dedo, cabelo preso. Olhos – verdes – com olheiras fundas. Mas o que me deixou mais impressionada eram as marcas de mordida no braço.
“Você ta usando drogas? ”
“Não”
“Você chega atrasado e quase sempre mal arrumado, você fica muito tempo no banheiro, e muito tempo falando com alguém sobre remédios no celular, todos os dias. Você precisa de ajuda, pode se abrir comigo. O que você está usando? ”
“Eu não estou usando drogas, não preciso de ajuda”
“O que são essas marcas de mordida no seu braço? Você está acabado! O que é essa mancha na sua camiseta? ”
Eu estava alucinada, todos os sinais possíveis de usuário de drogas estavam ali.
“Porque não quer me receber em sua casa? Deve ter uma carreira de cocaína em sua mesa né?”
Ele suspirou alto. Olhou bem para meus olhos e eu fiquei meio constrangida.
“Entre”.
A casa grande tinha uma sala na parte da frente por onde entrei. Tudo estava apagado, abafado e com cheiro de mofo. Só conseguia vislumbrar os móveis. Silencio modorrento, entramos num corredor que dava para um quarto no fim, de onde eu via uma luz fraca de abajur. No quarto, uma cama de casal no centro, e uma pessoa depositada ali. Um balde exalava um cheiro acre enjoativo ao lado da cama.
Valter estava a minha frente, se aproximou da cama e puxou um cobertor que escondia quase totalmente a pessoa na cama.
“Pai, essa é a Patrícia, veio nos visitar”
A pessoa que Valter se referiu como “pai” não se mexeu. Nem ao menos olhou. Parecia ter tido o sangue sugado e a pele colada junto ao osso. Esquelético e frágil. Careca, boca semiaberta, não consegui ver muitos detalhes. Estava surpresa demais. Era esse o segredo então.
O pai soltou um som alto e agonizante.
Num minuto me lembrei de todos os momentos que Valter me parecia distante, cansado, confuso, preocupado, pensando na morte da bezerra. Pensei em todos aqueles atrasos, e todas as faltas, da cumplicidade de nossa supervisora que provavelmente sabia de tudo.
Estava em prantos.
“Meu pai tem um tipo raro de câncer já faz 4 anos. Minha mãe cuidava dele enquanto eu trabalhava mas faz seis meses que ela faleceu de um infarto espontâneo. Não tínhamos dinheiro para interna-lo, mal tínhamos dinheiro para comer e comprar os remédios, então combinei com a vizinha dela olhar meu pai enquanto eu trabalhava. Mas havia uma série de cuidados que tenho que prever. Comida, banho, remédios que você nem imagina. Ele não vai aguentar muito mais, mas ainda é meu pai.”
Eu o abracei. E estava apaixonada por ele. E queria cuidar dele, dar descanso e carinho.

DIA 56
Assinei meu papel das férias. Fazia 3 anos que não tirava férias. Era cedo ainda. Fui informada que Valter faltou novamente. No dia em que estive em sua casa, ele disse que acreditava estar perto do fim.
Levei muita comida para eles, fui recebida por um sorriso cansado, mas bem satisfeito. Era como se eu sempre tivesse que estar ali. Fiquei o dia todo, limpando a casa, conversando e rindo com Valter. Era incrível que mesmo sob aquelas condições, ele ainda podia ser tão maravilhosamente bem-humorado.
Então lhe contei que estava apaixonada por ele. Estávamos no quintal, estendendo uns lençóis. Ele riu, não acreditou muito.
“Não estou em condições de ter uma vida própria agora”.

DIA 58
Ontem pela manhã, o pai de Valter finalmente descansou na eternidade.  Soube que era alcoólatra, violento e mulherengo antes de ficar doente. Valter me contou isso com muito pesar, com vergonha. Eu o beijei. Consolei, cuidei.
O cansaço haveria de passar, as coisas haveriam de se ajeitar. O dever dele estava cumprido.
Tudo ia ficar bem agora.

Munch - Det syke barn (1896)





"Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas." 

Rilke

















sexta-feira, outubro 07, 2016

ipê-branco

Quando João tinha 14 anos, foi trocado pela primeira namoradinha do Ginásio por um babaca que jogava futebol nas categorias de base da Portuguesa. Na mesma semana, sua mãe pediu divórcio de seu pai, o deixando para morar com ele, e sua irmã mais velha anunciou que estava de mudança para a casa do noivo, praticamente casados.
João viu, de repente, todas as mulheres de sua vida saindo de fininho, como se tivessem fugindo. Nesta semana misógina de sua vida, o único conforto foi devorar todas as músicas do Ira! que seu pai guardava LPs e CDs em baús, junto com uma penca de livros da biblioteca da família.
Ele não se envergonhava de chorar, enquanto lia Alexandre Dumas, Milan Kundera ou Lygia Fagundes Telles, pelo contrário, se fortalecia nisso.
Então quando fez 15 anos, na hora de cortar o bolo caprichosamente feito pela sua mãe numa tentativa falha de parecer que se importava com João, ele desejou nunca mais sofrer pela perda de uma mulher em sua vida. Ou pelo menos não se importar mais. Desejou ser sozinho, só ele e seus livros.
Com um sopro forte, a chama da vela se apagou em cima do bolo, enquanto duravam aqueles cinco segundos constrangedores entre o fim do “Parabéns” e a escuridão.

Havia um canto da rua onde ele morava quando garoto, que de jeito nenhum alguém poderia ir lá, porque era escuro e contavam histórias desagradáveis sobre aquele lugar. Pois bem, João chegou a conclusão de que sua vida amorosa, depois daquele aniversário de 15 anos, virou um lugar escuro e cheio de histórias desagradáveis, tal qual o canto da rua onde morou.

Aos 19 anos, seu pai faleceu. Ficou se perguntando se tal feito era em consequência de seu pedido de viver sozinho, uma vez que o velho era sua única companhia. A perda de seu velho significava uma vida inteira de saudades e arrependimento pelas coisas que não disse, que não fez. Era como uma penitência por não ter dado valor quando o tinha.
Acolheu toda a coleção de livros de seu pai e jurou aumentá-la. Foi trabalhar numa livraria na Avenida Ipiranga, perto de onde morava na Luz. Absorto nas mil coisas que planejava para si, não reparava em ninguém ao seu redor, vizinhos e porteiros sempre passavam em brancas nuvens, havia um número restrito de amigos nessa fase de sua vida, seu melhor amigo Hélio do primário e outros caras da escola.

Até que conheceu Ana, nova funcionária da livraria.
As mulheres eram para ele até então como se fossem um rolo compressor cheio de espinhos que passava por cima de seu coração. Mas só do seu coração. De todas as outras pessoas no mundo, não, as mulheres eram acalento. Eram um grande ipê branco que havia no jardim de sua escola, quando floria, lhe lembrava sua mãe. Mas não floria sempre.

A garota Ana tinha um ponto de vista bem maduro da vida pós-adolescência. Ela achava que não bastava se apaixonar. As pessoas deviam ter admiração e respeito pelo companheiro. Deviam ser fãs um do outro. João se apaixonou por ela, garota esperta, cheia de experiências para contar, algumas tatuagens, franjinha anos 70, roupas ora descoladas, ora vintages, batons vermelhos e na testa a bandeira da igualdade de gênero estampada. Ana jamais seria aquelas garotas de dramas baratos. Ana era forte. Linda, divertida.
João a queria. Queria que ela entrasse em sua vida, que conhecesse seu charmoso apartamento, queria que as cervejas depois do expediente fossem para sempre, queria cozinhar com ela e queria acordar com o sorriso dela ao lado. Mas claro que tinha uma parte de seu interior que sempre que o via se aproximando dela, corria aos ouvidos dizer "corra, é cilada, ela vai fazer você gostar dela e depois vai sumir" e outra parte que dizia "se você não for lá, vai envelhecer sozinho jogando dama no Sesc Pompeia, é isso que você quer?" .

Um dia a viu chorando na porta da livraria e então, como aquilo lhe incomodou, resolveu falar. Começou já se declarando e então Ana disse que não podia, não queria, ainda aos prantos. Era a primeira vez em um ano desde que conhecera que a via chorar. Ela disse que havia acabado de descobrir que estava grávida.

Ana sumiu. E João voltou ao seu casulo de livros que o mantinha em ponto morto.
Entrou numa banda, tocava bateria. Deixou barba e cabelos crescerem. Abriu um sebo com os montes de livro que acumulara ao longo da vida. Fez muitos, muitos amigos. Criou um estilo de vida descoladinho, buscava felicidade nas coisas simples. Era fotógrafo nas horas vagas, falava mandarim e só andava de metrô ou bicicleta. Curtia bares que tocavam música ao vivo, e conhecia todos do centro. São Paulo's lifestyle full time.

É claro que vieram outras garotas, algumas duradouras, outras passageiras. João procurava um pedacinho de Ana em cada uma delas. Um sorriso de dentes brancos, perfeitos, retos, sacanas. Uma pinta em forma de estrela que ela tinha no ombro. Os joelhos tortos, o som da risada. O estilo, os cabelos. Todas as garotas tinham algo que Ana tinha. Era uma forma de nunca a esquecer, porque talvez ela era a unica que o fazia crer que podia reverter o pedido que fez aos quinze anos e não perder mais ninguém que amava.

Todas as sextas feiras a noite, era regularmente o dia de ensaio de sua banda, que no sábado sempre se apresentava num bar na periferia. Ensaiavam sempre na casa de Hélio, o vocalista, que ficava na Aclimação. Hélio era seu amigo desde que a garota do primário o trocou pelo jogador da Portuguesa. Foi Hélio que lhe apresentou o primeiro cigarro, era Hélio que o aguentava todas as vezes que falava sobre sua mãe e irmã com ressentimento, que falava de Ana. Hélio era o cara. Mas ao longo dos anos, Hélio conheceu a Ana dele, uma professora chamada Rose, casaram e tiveram filhos, e além disso, Hélio envelheceu a ponto de ficar careca e meio barrigudo. Mas ainda era seu amigo de sempre, um ator engraçado que ganhava a vida com peças bem humoradas e alguns poucos programas de TV em canais pagos. Fazia algum tempo que o casamento de Hélio e Rose não estava indo bem, e seu amigo não conseguia se expressar sobre o que estava acontecendo exatamente. Era só uma apatia, uma indiferença. João sabia disso por cima, eram homens e amigos, não precisavam de protocolos para se abrirem um com o outro. Até que uma sexta feira antes do ensaio, Hélio informa a todos que não poderia fazer o ensaio em sua casa pois estava se separando de Rose.
Dados os devidos consolos entre os homens, fizeram uma noitada de bebidas e conversa para animar Hélio. E então, quando já ia tarde e todos já estavam bêbados falando alto, ouvindo Led Zeppelin e atirando garrafas pela janela, a campainha tocou. João havia alertado para o perigo de se fazer barulho em excesso. Abriu a porta desconfiado, pronto para dar uma boa resposta trépida a quem quer que fosse seu vizinho reclamão.

E então era Ana.
Um pouco mais velha, afinal, ambos tinham 41 anos agora. Mas era ela mesma, o sorriso branco, todo certinho, os joelhos tortos, a pinta em forma de estrela.
Ela arregalou os olhos, ele mal conseguia piscar. Ana virou as costas rapidamente e foi para seu apartamento, do lado oposto. João ainda bestificado, a seguiu, mas a porta bateu em sua cara grosseiramente.
Os rapazes, percebendo o clima que se seguiu, foram embora. Em seu apartamento, João dormira com a imensa vontade de bater no apartamento 508 de Ana.

Mas o que dizer 22 anos depois? Não conseguia pensar. Não conseguia acreditar que a primeira coisa que seu cérebro sugeria dizer pudesse ser real.
Como nunca tinha encontrado Ana no prédio antes? Ela estaria casada?
João percebeu que esses anos todos, moldou sua vida de forma que se um dia reencontrasse Ana, ela coubesse ali. E agora ela estava ali e já tinha uma vida.
Precisava fumar. Sair, tomar um café na padaria. Queria falar com ela, era sua chance, mas ao mesmo tempo sentia um medo danado.
Foi até o 508, mas não conseguiu bater na porta.
Desceu as escadas frustrado, e notou um degrau estragado. Anotou mentalmente que iria subir de elevador.
Então, como se o destino tivesse cansado da novela da vida privada de João, ele se viu no mesmo elevador que Ana. Ela mal respirava ao lado dele, e ele não parava de fita-la. E então o elevador deu uma bela chacoalhada e parou. Estavam presos.
- Eu não acredito que o elevador parou.
- E eu não acredito que te encontrei. Você se lembra de mim?
- ... João.
Ficaram se olhando alguns segundos longos.
- Você sumiu Ana. Eu sempre quis encontrar você de novo.
- Eu tive que sumir. Tive alguns problemas de família.
- Você disse que estava grávida.
- Pois é, eu acabei não tendo o bebê.
Ana abaixou o olhar certamente encabulada. Ambos estavam absortos em o que dizer, Ana parecia trêmula. Quando retomaram a conversa, falaram ao mesmo tempo, praticamente se sobrepondo:
- Eu sei que fui muito babaca do jeito que te falei as coisas que sentia sobre você, mas eu precisava falar porque você era a única pessoa pela qual eu nutria sentimentos, e você me fez fazer planos que eu jamais pensei ser capaz de fazer...
- Eu tive que sumir, mas eu nunca deixei de pensar em você, fui uma idiota em ter deixado um cara como você para trás, quis voltar, quis te achar mas agora eu tenho você...

João pensou em todos os momentos que quis ter Ana por perto, e agora ela estava ali. Para ouvir suas músicas exageradas, para cozinharem juntos, para fotografarem, para irem em shows. Para terem tatuagens. Para não fazerem nada. Para fazerem as cervejas depois do expediente serem eternas, junto com os sorrisos e a companhia um do outro.
Olhava para o semblante de Ana na sua varanda algum tempo depois, um grande calor invadia sua alma. O canto escuro de sua vida amorosa passara por uma reforma e parecia ser agora um grande ipê branco florido para sempre.



Tabebuia roseo-alba



"Árvore da vida
Árvore querida
Perdão pelo coração
Que eu desenhei em você
Com o nome do meu amor" 

Arnaldo Antunes - As Árvores

quinta-feira, outubro 06, 2016

Cavalo Manco


Eu estava levando um alicate de unha para afiar numa perfumaria, quando ouvi uma voz que puxou de dentro de mim uma série de lembranças. 

Vi um cabelo loiro a minha frente. 

Me lembrei do dia que a dona daquele cabelo loiro desmaiou na escola do ensino médio que estudávamos. Estávamos prestes a apresentar um seminário de biologia na escola, mas ela não havia estudado, então ficou nervosa e desmaiou, ou fingiu um desmaio.
A conheci no caminho de volta da escola, no ônibus que por sinal era o mesmo, mas eu descia no começo da linha e ela no ponto final. Eu perdi meu cartão de passagens do ônibus e ela achou e o guardou. Tinha 500 reais de créditos lá, daria pra ela usar e economizar o ano todo. Mas ela me achou e devolveu o cartão. Viramos amigas. 
Nos intervalos das aulas, saíamos para comer lanche na cantina. Raramente Dani tinha dinheiro para pagar, então sempre dividíamos um salgado. 
Ficávamos numa mesa observando os rapazes passando, pensando e comentando sobre quem seria legal, quem seria chato, quem era bonito, quem não era. Tínhamos o mesmo olhar. 
Antes de ir embora, almoçávamos a merenda da escola. Compartilhávamos a salada. Falávamos de boca cheia uma com a outra e ainda faziamos guerra de arroz no meio do refeitório, desse jeito conhecemos muitas pessoas que queriam participar da diversão e logo éramos um grupo. 
Mas mesmo no grupo, sempre prevalecia eu e Dani, sempre dentro dos ônibus de tênis destruídos, pé em cima dos bancos, ouvindo rap ou funk e falando muito palavrão. 
No começo eu não era assim, era retraída e calada, séria. E Dani era dorminhoca, quieta, chegava a parecer melancólica. Só que quando estávamos juntas, parecia que algo dentro de mim acordava, algo realmente muito íntimo e alegre. Ou então uma revolta ao mundo como ele era, compartilhada com ela. Parecíamos um par da mesma pessoa. 
Dani gostava de um grupo de forró muito famoso na época, chamado Calipso. Perto da minha casa havia um grande poster do Calipso que ela sempre que via pendurado na papelaria, brilhava os olhos. 
Em seu aniversário, apareci na escola com o poster e a presenteei. 
Havia um rapaz que pegava ônibus conosco todos os dias. Ele tinha uma barba no queixo, um sorrisão bem claro e alegre e um olhar misterioso que eu amava. Era moreno, forte, musculoso, gostava de bandas que eu gostava. Dani sabia dessa minha queda pelo rapaz, e ele nem ao menos olhava para mim, mas falava com ela. 
No meu aniversário, na saída da escola, Dani me deixou sozinha no estacionamento da escola onde o rapaz apareceu e me puxou num beijo. Meu primeiro beijo. 
Mas ela tinha um problema muito grande com aprendizagem. Tentei ajudá-la de varias formas mas ela repetiu de ano. E na segunda vez que ia repetir de ano de novo, seus pais a tiraram da escola. 
Nos afastamos drasticamente. Comecei a namorar o rapaz do primeiro beijo. 
Soube que Dani engravidara algum tempo depois. 
"Oi Ingrid". 
Oi Dani, minha amiga. 


SEGALL - "Duas amigas" - óleo 1914