terça-feira, junho 14, 2016

Monólogo intimista sobre o capitalismo

Eu sentia uma raiva inexplicável desde os 11 anos, e nada neste mundo foi suficiente para suprimi-la ou consolá-la.

Não entendia porque algumas pessoas podiam ter coisas, comprar coisas que eu não podia ter. Quando criança, achava que a culpa era de meus pais que tinham dinheiro e não queriam comprar. Até que fiz aniversário uma vez, 12 anos acho, e pedi um Nike a minha mãe. E só então depois de ver o esforço que ela teve que fazer para me presentear com um tênis de 300 reais, é que notei que havia algo errado. Não era minha mãe. Não era o tênis. Não era o trabalho desvalorizado da minha mãe como professora, que pagava ralo demais.

Era que eu tinha que ter o tênis, e porque queria era complicado demais explicar. Toda aquela baboseira que muitos já sabem sobre se vestir com roupas de marca para mostrar que você é alguém, todo o blablabla da adolescência.

Mas não bastava desconstruir isso. Eu podia ter me tornado um adolescente de 17 anos que usava um tênis barato e popular e não dava a mínima para marcas. Mas esse lance todo de marcas foi só a ponta do iceberg.
Tinha amigos na mesma situação. Então percebi, 90% das pessoas que eu conhecia eram pobre. Não tinham como esbanjar dinheiro comprando um tênis da moda sem desfalcar dinheiro de algum lugar.

E a raiva continuava, como um animal rugindo dentro de mim.
Então, aos 17 entrei no primeiro emprego. E a ficha da realidade caiu como um elevador solto no fosso.

Então pra eu ter um tênis e ser socialmente aceito, devia passar horas sentado a frente de um computador realizando ligações e causando incomodo as outras pessoas... aquele emprego era errado por diversos motivos. Mas mesmo que eu listasse porque aquele emprego era tão ruim, a questão não era o emprego. A questão era porque trabalhamos e porque tínhamos que trabalhar, porque devíamos nos preocupar tanto em ganhar dinheiro e querer ter dinheiro, sabendo que nem se trabalhássemos a vida toda, não teríamos 1% do dinheiro que 1% da população tinha, e que havia uma grande quantidade de pessoas no mundo que jamais teriam nem ao menos as mesmas oportunidades que eu tinha pra ter a minha miséria.

Eu não podia ser grato a tudo isso. Não queria me conformar com a miséria, nem com a venda do meu tempo, disposição e juventude em troca de dinheiro. Eu queria trocar meu tempo por algo que fizesse sentido.

E seguia com raiva inflamada no peito. Berrando, vibrando e me avisando que um dia escaparia para fora de mim.

Diante de tanta revolta crescendo como um cogumelo na chuva, alguns outros pontos foram sendo esclarecidos, até virar um problema claro, óbvio e constante no meu vocabulário: o capitalismo.

Eu sempre me lembrava do Nike com certo peso na consciência, porque fiz minha mãe comprar um Nike na adolescência só para mostrar que tinha um tênis de marca. Ficava, naquela época, a manhã inteira assistindo TV, desenhos animados e seriados mostrando a vida estereotipada dos norte-americanos, seus Nikes, seus celulares, seus carros. Eu fui enganado a adolescência inteira. Fui seduzido para ser como eram aquelas pessoas, imaginando que se fosse como elas, os problemas que eu sentia passariam. A raiva que rugia, não existiria, porque aquelas pessoas não tinham a aparência de ter raiva dentro de si. Mas foi só ganhar o Nike pra perceber que era tudo mentira, depois do tênis eu ainda me sentia pior. Mais pobre, com aquelas pessoas norte americanas ainda mais distantes de mim, porque para mim, ganhar um Nike era um evento, para elas era comum.

Isso foi amadurecendo de uma tal forma durante o período do meu primeiro emprego, que comecei a idealizar uma vida sem dinheiro. Mas quanto mais idealizava, mais achava impossível conseguir, não com a TV, rádio e outdoors bombardeando o tempo todo de que você precisa de coisas que você não precisa e ter o corpo predeterminado por marcas, empresas e grupos de pessoas que não sabem nada sobre você e te tratam como número. E mesmo que com o tempo você se torne imune a propaganda, as pessoas ao seu redor não, e cobram de você a vida que o capital quer que você tenha.

Aos 20 anos fui vencido. Estava cursando uma faculdade cujo objetivo era formar pessoas para o mercado de trabalho, e claramente eram censurados os ensinos que se desviassem desse foco para algo mais culto e acadêmico. Eu estava lá, fazendo parte desta palhaçada, trabalhando e tendo medo de perder meu emprego, tendo medo de ficar sem dinheiro. As coisas que possuía, acabaram me possuindo. O desejo de tê-las também. A cobrança da família e do capital latejavam em minha mente. Me envolvi com movimentos sociais na esperança de amenizar a sensação de fracasso, e acredito que muitas das pessoas que conheci lá também tinha isso em mente. Mas, a burocratização de como esse tipo de coisa se dá hoje em meu espaço, não por acaso, era desmotivador.

Depois dessa experiência detestável e frustrante, onde muito se quer fazer, mas nada é feito de fato, a raiva, aquela que ficava rugindo e vibrando dentro de mim, alastrou.

As pessoas criam esperança onde menos parece provável. Em algum deus, por exemplo. Algo sobrenatural para salvar-lhes dos problemas que elas tem. Criam teorias baseadas em relíquias históricas, levam a sério algo porque alguém antes dela levou a sério e usam disso para justificar todos os atos que o capitalismo lhes obriga a fazer. Inventam, mentem e manipulam sem dó, porque todo mundo quer o perdão por ver tanta coisa absurda sendo feita e não estarem fazendo nada. Não é normal que 1% da população seja rica e possam ter seus Nikes enquanto o resto se mata para ter um, mas o capitalismo faz você achar que sim. E a religião justifica isso, ou perdoa. Mas todos sabemos que é tudo mentira, no interior de nossos corações. As religiões são uma mentira.

Em outros casos, há a alienação. Teóricos muito inteligentes já explicaram sobre isso muito antes de minha mãe me dar a luz. Mas a questão não é tanto a alienação de fato, porque acreditar que ainda hoje no séc. XXI há pessoas que não conseguem ver o que está acontecendo, que estamos nos matando por dinheiro, é impossível. Todos sabemos o que está havendo, sabemos que há algo que não deu certo, e que não devíamos nos conformar. Mas nos conformamos. E pior, deixamos que todos acreditem que nós não estamos vendo. Que nosso único interesse é o pão e circo. Pior que mentir para os outros, é mentir para si. E quando fingimos que não vemos as mazelas do capitalismo, estamos mentindo para nossa própria existência.

E mais recentemente, é fácil observar o que eu acho que é o pior caso de todos, que é quando, a balança dos sentimentos ruins fica mais pesada que a balança dos sentimentos bons, na relação entre as pessoas. O pior dos casos, é quando o indivíduo concorda com o estupro mental e financeiro do capitalismo. Quando apoia e se afirma militante ativo das causas capitalistas. Talvez já calejados de sentir a raiva batendo quando o consumismo vence, quando o desejo pelas coisas se torna superior do que a compaixão e o caráter.

Você não é o que você tem, você não é as coisas que compra. Falta entender que tudo no capitalismo é efêmero, o tempo é a única coisa que possibilita alguma riqueza. Cabe saber do que vale a pena ser rico.





Eu sou a constante especulação de Jack.

2 comentários:

  1. Texto incrível, como todos que leio seu. Mas esse ainda mais, parabéns!

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  2. Ingrid
    O caso que você contou sobre o tênis é mais comum do que você possa imaginar. E se nos anos 1990, a onda era o Nike da moda, hoje em dia o que importa é o I-Phone ou o Galaxy de ponta, ainda mais se você tiver uma Internet 4G porreta ou mesmo uma senha de wi-fi daquelas...
    Há um rap do racional Brown que traduz perfeitamente suas impressões: "Na lei da selva, consumir é necessário / Compre mais, compre mais, supere seu adversário / Seu status depende da tragédia de alguém / É isso, capitalismo selvagem!"
    Somos massacrados desde o berço com essa ideia de que se não consumimos, nos tornamos inferiores e jamais poderemos ser felizes. Como se houvesse alguma vinculação direta entre felicidade e consumismo. Como se de fato os objetos de nossa cobiça fossem tão indispensáveis quanto a nossa alimentação ou nosso vestuário ou lazer.
    E, acredite, não é apenas a mídia quem faz o trabalho. Aquele que está ao seu lado, convive contigo no dia-a-dia, aqueles que se reúnem nos almoços de família aos domingos, colegas de trabalho e/ou escola, etc., essas pessoas também aceitam essas idéias tolas de forma impressionante. Te acusam de "estar por fora", de ser "quadrada", de não ser uma pessoa legal só porque não ouve ou lê ou fala determinadas coisas... E assim você acaba se sentindo extraterrestre em seu próprio planeta.
    Não foi à toa que durante anos as tribos nerds e assemelhados se ensimesmavam tanto. Não é à toa que aparece mais e mais gente que se dispõe a repelir com força os clichês da vida cotidiana e acabam se tornando "pessoas solitárias". A paciência dessas pessoas está quase extinta porque não conseguem ligar uma TV ou ouvir um rádio ou entrar na Internet ou mesmo caminhar por aí sem ouvir ou vir alguma demonstração de bobice midiática.
    Observe a quantidade de feriados ou datas marcantes existentes no Brasil que são uma verdadeira ode ao consumismo desenfreado. Certas datas parecem ter mais importância por causa dos presentes que propriamente a possibilidade de você encontrar alguém na rua ou ir à casa de alguém que lhe é agradável. Já cansei de ir a locais onde as pessoas ficavam com o seguinte comentário "Caramba, olha que só que presente bom ele/ela está dando..." Isso é de vomitar!
    Portanto, temo que ainda veremos coisas piores vindo por aí. Afinal, smepre pode piorar... Grande beijo!

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