quarta-feira, abril 13, 2016

Quatro Carolinas Por Favor

Frio batendo na bochecha toda vez que a porta do trem abre. Mas do pescoço para baixo, o corpo é só um pedaço do enlatado que o trem se transformava as 6 da manhã de Francisco Morato sentido Luz, em São Paulo. Um amontoado de gente que faz com que a ideia de se mexer pareça algo ousado.
Já na estação da Luz, o amontoado agora ousa se mexer e ruma sentido qualquer uma das portas de saída, como bois criados em confinamento.

2014. Maio. Estava chovendo, levantei o capuz do moletom para não estragar a lobeca caprichada pro trabalho.
Passar no meio dos mendigos era rotina, precisar de dinheiro todo mundo precisa. "Não tenho moeda moça, se quiser eu tenho um pacote de bolacha aqui", abri a bolsa e entreguei o pacote de Triunfo na mão da criança que uma moça moradora de rua segurava enquanto me pedia dinheiro.
Pede dinheiro e ganha comida, devia estar feliz.

Cheguei na Padaria "Princesinha do Riskallah", vesti o avental, coloquei a touca cuidadosamente para não estragar o penteado, "bom dia Sr Jorge", "bom dia meu filho" liguei a chapa e comecei.
Pão de queijo, Sonho, Língua-de-sogra, Pão na Chapa, pingado com açúcar, não, sem açúcar, capuccino, café puro, Misto Quente, Pão com Mortadela, requeijão e Carolinas.

Carolina morava num prédio ali na frente da padaria e eu a atendia todo dia. Cheirosa, morena, alta, esperta. Pedia 4 carolinas e ia-se embora. Eu tímido, ficava olhando ela desfilar pela padaria todo dia sem conseguir articular qualquer coisa. Vez ou outra ela conversava com Seu Jorge, o dono da padaria, falava sobre política e rumava para Santa Ifigênia com um aroma de calêndula que ficava para trás.

Esqueceu o celular em cima do balcão naquele dia, peguei antes que qualquer um visse e enfiei no bolso da calça. Entregaria a ela pessoalmente, como uma missão.

A caixa da padaria, Dona Adriana, esposa do Seu Jorge, suspeitava que eu tivesse algum tipo de interesse em Carolina, porque sempre que ela ia embora eu ficava acompanhando com o olhar. Dizia ela "Sossegue menino, Carolina não é pro teu bico, se engrace com essas meninas que frequentam os bailes que você vai la na sua área".
Eu era chapeiro, negro e da periferia, frequentava baile funk e roda de rima, usava camiseta larga e mostrava a cueca. Não estudava mais porque tinha que trabalhar muito e contribuir em casa.
E uma moça poderia me rejeitar por ser assim, eu jamais entenderia.

Depois do trabalho na padaria, rumei pro segundo emprego, ainda com o celular no bolso,
Pouco antes de entrar no prédio da Contax, lá no Brás, olhei para ver se tinha alguma coisa, e em questão de segundos um menino veio correndo e tomou o aparelho da minha mão.  Joguei a mochila e saí disparado atrás do moleque em pleno horário de almoço abarrotado de carros parados na  Rua Piratininga. Ele entrou por uma viela, se escondeu numa casa muito pequena e bateu a porta, comecei a esmurrar a porta e nada. Saí, e mal sabia o que pensar, o que fazer, mas eu precisava pegar de volta o celular de Carolina. Pessoas entravam e saiam, a viela era uma pequena vila com varias casinhas humildes, um chão de cimento quebrado com um enorme esgoto aberto, coisas que já não eram novidades para mim. Comecei a interceptar as pessoas e elas se afastavam como se o ladrão fosse eu, mas, por deus, eu era a vítima!

Um homem se propôs a me ajudar. Alisava o bigode enquanto eu contava para ele como fui roubado, depois começou a bater na porta da casa onde estava o ladrão, chamando por um nome, "Pinote".
"Ô Pinote, saí aí vamos conversar, se não sair o moço vai chamar a polícia".  A porta abriu e saiu o ladrãozinho que agora eu já sabia que era chamado de Pinote. Não devia ter nem 14 anos ainda,  uma criança menina de uns 2 anos descalça e com roupas imundas, cabelo igualmente imundo, e um rapaz de uns 19 anos, parecido comigo, roupa larga, cueca a mostra, boot no pé, piercing na sobrancelha e um bigode fino na cara. Saiu gingando, não vi o celular.

A conversa foi longa, se é que poderia chamar de conversa. Varias frases como "Cê ta ligado que a fita é essa e o bagulho é doido" depois, o resumo: eu teria que pagar pelo resgate do celular, e o malandro era duro na negociação. Como se tratava de um celular caro, queria que eu pagasse uma parcela de um carnê de sua moto, e já vinha com o carnê no bolso.
Àquela altura, eu fodido e atrasado no trabalho, comecei a rir. Pagar pra malandro devolver o celular que ele roubou, mil dinheiros nisso?
Quando ri, o Pinote disse "Falei que ele não ia aceitar Dinho, vamo vender e cê paga o carnê".
Olhei para o senhor de bigodes, ele fez um gesto como "não vai ter jeito rapaz". Dinho pegou o celular do bolso "iPhone 6 né? acho que até sobra moleque" .
Meu sangue ferveu. Deixar malandro crescido me passar para trás estava fora de cogitação.
Desferi um soco no tal de Dinho e tomei o celular, em questão de segundos. Saí correndo pela rua, voltei pela Contax e vi minha mochila "graças a deus a mochila". Quando virei a esquina da Rua da Alegria, não vi ninguém atrás de mim.
Já não ia mais trampar no segundo emprego aquele dia, então que se foda, iría para a Luz e entregar o celular a sua dona.
Desci na Sé, fui até o Largo São Francisco e vi o sol se por. Era cedo ainda.
Será que Carolina estava preocupada? Qual seria sua reação quando eu o entregasse?
"Oi Diego, tudo bem? O que você faz por aqui essa hora? A Padaria já fechou não?"
"Sim Carol" (poderia eu chamá-la de Carol?) "Você esqueceu seu celular, toma ele aqui"
"Oh muito obrigada! Gostaria de entrar e tomar uma água" e pronto, aí era eu e a morena.
Rumei para a Luz novamente, com  o pensamento só nela. Metrô lotado, suor, gente cansada, preferi descer no Anhangabaú.
E que má sorte, a policia militar me enquadrou na saída da estação e revistou. E ofendeu. E achou o celular. E para minha surpresa, o celular estava com a tela trincada. Trincou e eu nem vi, como entregaria o celular para Carolina daquele jeito?
Gambé olhou para mim com deboche, depois falou para os outros, "pode liberar, esse aí roubou um celular todo estourado", "eu não roubei" disse. A resposta do bota-preta foi um tapa na cara e a tela do celular trincada ligada com a foto de um cachorro com um laço na cabeça de fundo, bem no meu rosto.
Saí revoltado, humilhado e fui para a frente do prédio que sabia ser onde Carolina morava.
Eu ia devolver o celular assim mesmo.
Subindo a rua, vejo Carolina a minha frente voltando do trabalho, dez passos de distancia. Grito seu nome, mais de uma vez, e ela parece não ouvir. Corro a sua frente e digo "Oi". Ela se assusta mas me reconhece.
"Oi Diego, ta tudo bem", diz preocupada.
"Oi Carolin-"
"Eu não me chamo Carolina, me chamo Samanta" me interrompeu, séria, me encarando. "Seu Jorge me chama de Carolina porque compro carolinas todo dia no café da manhã".
Meu pensamento era só um: eita. Mostrei o celular para terminar tudo isso logo. Ela olhou e voltou a me fitar. "Não é seu? Não esqueceu no balcão hoje cedo?"
"Não", e me mostrou seu celular em sua mão, inteirinho.
Olhei para o chão, pensei em todas as coisas que me ocorreram por causa daquele celular e balbuciei "Ah então beleza, vou embora então".

Virei e saí querendo nunca mais ver Carolina/Samanta na minha frente e decidido em parar de ser vacilão com as mulheres.

"Você não quer uma água?" disse a moça sorrindo. Eu sorri de volta e subi para seu apartamento.

Até hoje não sei de quem é o celular.










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