quinta-feira, fevereiro 18, 2016

A hora do recreio

Eu era estranha, estranha demais pra querer fazer amizade com alguém. Não sabia lidar com aquela liberdade das faculdades, "saia quando quiser, assista a aula que quiser, o mérito e o prejuízo será todo seu".

Estava sentada num banco no jardim de inverno da faculdade porque me recusava a ver aula de Estatística. Estatística pra quem? Aquilo fazia minha cabeça rodar, e todos os outros vinham puxar assunto sobre a matéria com a fórmula dos cálculos na ponta da língua, me fazendo ficar enjoada.
Então resolvi sair e fumar, a próxima aula talvez fosse menos ruim, e eu não precisava dar satisfações a ninguém sobre assistir ou não uma aula.
Abri a bolsa e deixei aberta, estava cheia de bombons, outra coisa que não sei lidar. Estava meio escuro e lá só havia uma luz, um amplo espaço cheio de arvores e bancos, com um apenas uma luminária. Eu gostava daquilo.

Então ele veio, com uma camiseta verde horrorosa e um all star preto surradíssimo. Pediu isqueiro, aí deu uma disfarçada e pediu cigarro. Sabia que ele não tinha cigarro. Educadamente agradeceu quando o dei e sentou-se num banco próximo. De repente perguntou o que eu estava achando da faculdade. Tínhamos começado as aulas a 2 semanas e eu ainda não falava com ninguém. Respondi que estava meio frustrada, mas que tinha fé que melhoraria. Não dá pra fazer uma avaliação de verdade com duas semanas de aula.
Ele concordou. E me sorriu. E quando vi aquela linha branca, reta, perfeita, com os caninos levemente saltados que eram os seus dentes, eu sabia que era aquilo que gostaria de ver para o resto da minha vida. Ficamos conversando sobre possibilidades de estágio e amenidades da faculdade e fumando um cigarro mentolado atrás do outro.
Eu tinha o hábito de apagar as bitucas na parte de cima do encosto dos bancos, fazendo marcas retilíneas uma em seguida da outra. Logo ele estava fazendo isso também e havia 20 marcas dessa no banco. Acabamos falando sobre nossas vidas, tínhamos recém saído da adolescência, mas agíamos como se tivéssemos 16 anos, comendo bombons sem parar. Falou sobre seu falecido pai, falou sobre fazer intercambio na Irlanda, falou sobre seu time do coração e eu torci um pouco o nariz, era o que justificava a camiseta verde horrorosa. Falou sobre Janaína, uma aluna do ultimo ano que ele conheceu no trote e que estavam ficando. Falou surpreso "Ela calça 32! É um elfo!" e rimos. Só depois é que eu entenderia tudo isso.

Fomos comprar mais cigarros, entrei no bar e o deixei esperando na porta. Fui cutucada por um rapaz bêbado que dizia que tinha levado um fora meu e eu nem lembrava. Fiquei com medo, o rapaz começou a incomodar e eu olhava pra fora pra ver quem me esperava tentando fazer algum sinal que ele entendesse que eu estava com problemas, dentro de um bar cheio de homens bebados, com um bêbado me aporrinhando. Quase chorei de raiva. até que ele entrou, com toda aquela imponência, másculo, e tão menino, com as bochechas rosadas, e se dirigiu ao bêbado "algum problema amigo?", o bêbado respondeu que não e saiu, como um cachorro sai quando o molhamos com a mangueira.

Rimos muito disso depois, fumamos muitos cigarros ainda, e eu de vestido branco em pleno outono, morrendo de frio até ir embora com um moletom verde que ele me emprestou, impregnado com seu cheiro que eu, algum tempo depois, me entorpecia.




***esta crônica faz parte de um conjunto de crônicas que tratam dos mesmos personagens, todas identificadas com o marcador "Janeiro"***

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